A humanidade dos
não-humanos
Fonte: http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/nytimes/2013/12/15/a-humanidade-dos-nao-humanos.htm
James Gorman
15/12/201300h01
Dias do chimpanzé como cobaia
podem chegar ao fim
Marlon,
um chimpanzé de 10 anos, do Centro de Pesquisa New Iberia na Louisiana, nos
EUA. As pesquisas biomédicas com chimpanzés podem ser encerradas em um ano nos
EUA. O país é um dos dois únicos que realiza estudos invasivos com os animais;
o outro é o Gabão, na África.
Tim
Mueller/The New York Times
O que é uma pessoa?
"Seres que se reconhecem como 'eus'. Isso são
pessoas." Essa era a visão de Immanuel Kant, disse Lori Gruen, uma
professora de filosofia na Universidade Wesleyan que pensa e escreve
frequentemente sobre animais não-humanos e as questões morais e filosóficas
envolvidas na forma como os tratamos.
Na semana passada, ela respondeu a perguntas numa
entrevista sobre uma nova estratégia jurídica que reconheceria os chimpanzés
como pessoas legalmente, com direito à liberdade, ainda que uma liberdade com
limites consideráveis.
O Projeto de Direitos Não-Humanos, um grupo de
defesa liderado por Steven M. Wise, entrou com pedido de habeas corpus em Nova
York na semana passada em nome de quatro chimpanzés cativos: Tommy, cuidado por
um único dono em Gloversville; dois na Universidade Stony Brook; e um no
Santuário de Primatas em Niagara Falls.
Wise acredita que o uso histórico de processos de
habeas corpus como uma ferramenta contra a escravidão humana oferece um modelo
de como lutar pelos direitos legais para não-humanos.
Seu caso baseia-se fortemente na ciência.
Cientistas deram nove declarações que fazem parte dos documentos do processo e
oferecem opiniões sobre o que a ciência diz sobre a vida, a capacidade de
pensar e a consciência de si mesmos dos chimpanzés.
As provas, argumenta Wise, mostram que os
chimpanzés são suficientemente parecidos com os seres humanos a ponto de ter
alguns direitos legais, não o direito ao voto ou à liberdade de religião – ele
não tem como objetivo um verdadeiro planeta dos macacos – mas um direito
limitado de liberdade corporal. Os processos pedem que os chimpanzés sejam
libertados para ir para santuários onde teriam mais liberdade.
Legalmente, a estratégia é bastante incomum.
Richard L. Cupp, professor de Direito na Universidade de Pepperdine na
Califórnia, que é contra garantir direitos a animais não-humanos, descreveu a
questão num e-mail como "algo bem pouco convencional". Ele disse:
"os tribunais teriam que expandir dramaticamente a lei comum existente
para que esses casos tenham sucesso."
Lori Marino, da Universidade de Emory, que estuda
os golfinhos e outros cetáceos é diretora de ciência do Projeto de Direitos
Não-Humanos, disse que "isso envolve muito mais do que esses quatro
chimpanzés." Wise, disse ela, "vê isso como a chave que pode mudar
muitas coisas. É potencialmente transformador."
Ela disse que não tem ilusões de que será fácil
ganhar os direitos dos animais. "Não pode acontecer enquanto estivermos
vivos", disse ela.
A ciência do comportamento é apenas uma parte da
argumentação jurídica, embora seja crucial para a ideia central – de que os
chimpanzés são autônomos em certa medida. A autonomia pode significar coisas
diferentes, dependendo se o assunto é chimpanzés, teleguiados ou robôs
aspiradores de pó, e se a linguagem utilizada é a da lei, da filosofia ou da
inteligência artificial.
Gruen vê este como um termo repleto de problemas na
filosofia, mas Marino diz que, para os fins do esforço jurídico, autonomia
significa "uma capacidade muito básica de ser consciente de si mesmo, de
suas circunstâncias e de seu futuro."
A ciência pode não ser decisiva para defender este
argumento,como Gruen aponta, mas o que ela pode fazer é apoiar ou minar essa
ideia de autonomia. "Se você fizer as perguntas certas, há respostas
importantes que a ciência pode dar sobre a cognição e o comportamento
animal", disse ela.
Bebê chimpanzé é adotado por
cachorra na Rússia
O pequeno
chimpanzé senta ao lado de sua mãe adotiva -- uma cachorra da raça mastim--,
que passou a tratá-lo com filho, desde que o animal foi renegado pela própria
mãe em um zoológico da Rússia.
Reprodução/English Russia
Marino disse que a ciência poderia "contribuir
com provas para os tipos de características que um juiz pode considerar como
parte da autonomia".
Gruen, Marino e Wise fizeram apresentações numa
conferência, Pessoalidade Além do Humano, na Universidade de Yale, no fim de
semana. Eles também deram entrevistas relacionadas ao processo judicial durante
a semana antes da conferência.
O tipo de ciência que sustenta a ideia de
chimpanzés como seres autônomos também pode sustentar a ideia de que muitos
outros animais cabem nessa descrição. Há depoimentos relacionados à capacidade
cognitiva, uso de ferramentas, vida social e muitas outras capacidades dos
chimpanzés, mas há questões sobre a pertinência de cada linha de provas.
"Isso é importante para ser filosoficamente
uma pessoa – o uso de ferramentas?", perguntou Gruen.
As questões de autoconhecimento e de consciência de
passado e futuro atingem o cerne de uma visão de senso comum sobre o que é ser
uma pessoa. Os chimpanzés, elefantes e alguns cetáceos têm mostrado que podem
se reconhecer num espelho.
Mas o projeto de direitos está reivindicando mais,
dizendo que os chimpanzés "sabem quem foram ontem, hoje e amanhã",
diz Marino, e "têm desejos e metas para o futuro".
Há muitas evidências de que os chimpanzés e outros
animais agem pensando no futuro. Algumas aves escondem sementes para recuperar
em tempos difíceis, por exemplo.
Um dos depoimentos foi de Matthias Osváth, da
Universidade de Lund, na Suécia, que estuda a capacidade de raciocínio dos
animais, particularmente de grandes símios e algumas aves. Ele cita uma série
de estudos de chimpanzés que sustentam a ideia de que eles têm uma noção de
futuro, inclusive recusando uma recompensa imediata para ganhar uma ferramenta
que os levará a uma recompensa maior.
Chimpanzé faz ultrassom do
coração em zoológico no Reino Unido6 fotos
Plugs são
colocados na pata do chimpanzé Dylan, que fez uma ultra-sonografia de coração
no zoológico de Chester, em Liverpool, no Reino Unido. Os testes são parte de
um programa internacional que estuda as condições cardiológicas dos macacos.
Phil
Noble/Reuters
Numa pesquisa bastante conhecida de Osvath, ele
relatou sobre Santino, um chimpanzé de um zoológico na Suécia, que estocou e
escondeu pedras que mais tarde atiraria nos visitantes humanos. Osvath
argumentou que Santino tinha a capacidade de pensar em si mesmo no futuro
usando as pedras que guardava.
A ciência não pode provar o que se passava na mente
de Santino. Mas Marino disse que as provas acumuladas poderiam ser usadas para
pedir a um juiz: "Se você olhar para todas as provas no total, que tipo de
ser poderia produzir todas essas provas?"
Nem todos os defensores do bem-estar animal estão
convencidos de que pedir direitos para os animais é o melhor caminho.
Gruen disse que tinha dúvidas sobre a abordagem dos
direitos, filosófica e politicamente. "Na minha opinião faz mais sentido
pensar sobre o que devemos aos animais." O progresso nessa frente em 2013,
principalmente para os chimpanzés, surpreendeu e encantou muitos ativistas. Os
Institutos Nacionais de Saúde estão aposentando a maioria de seus chimpanzés. E
o Serviço de Pesca de Vida Selvagem dos EUA propôs mudanças que classificam
todos os chimpanzés, mesmo os que vivem em laboratórios, como ameaçados de
extinção, uma iniciativa que levantaria obstáculos para experimentos com
chimpanzés de propriedade privada.
Um ponto a lembrar é que a classificação como
pessoa não significa ser humano. Robert Sapolsky, primatologista e
neurocientista da Universidade de Stanford, que não está ligado ao processo
jurídico, disse: "acho que as provas certamente sugerem que os chimpanzés
são autoconscientes e autônomos." Isso ainda deixa um grande hiato entre
chimpanzés e humanos, disse ele. Os chimpanzés podem olhar para o futuro e
guardar comida para mais tarde, ou planejar "como encurralar macacos que
estão caçando". Os seres humanos, observou ele, podem pensar "nas consequências
do aquecimento global para os netos dos seus netos, ou na eventualidade de o
sol morrer, ou de eles próprios morrerem."
Será que esses dois seres são do mesmo tipo? Será
que isso se relaciona com o status jurídico de pessoa? Cabe aos tribunais decidirem.
Tradução: Eloise de Vylder