segunda-feira, 31 de março de 2014

Religão e Pobreza em Israel


Em meados de dezembro, um relatório do Instituto Nacional de Seguros e do Birô Central de Estatísticas apontou que a taxa de pobreza de Israel estava vergonhosamente alta: 23,5%. Ele mostrou que um quinto das famílias --e um quinto dos aposentados-- em Israel é oficialmente pobre, assim como um terço das crianças.
A desigualdade de renda de Israel é uma das mais altas do mundo (atrás do Chile, México, Turquia e dos Estados Unidos). Israel, como relatórios da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico já indicaram mais de uma vez, de alguma forma consegue ser uma "nação start-up", com alto crescimento econômico; porém, ao mesmo tempo, permanece uma nação atrasada, com muitas famílias extremamente pobres.

A publicação do relatório anual de pobreza provocou dois ou três dias de discussão acalorada. Aryeh Deri, o líder do Partido Shas, o chamou de uma "tempestade de pobreza". O Shas depende dos eleitores religiosos de baixa renda e o relatório foi uma oportunidade para um político manifestar seu ultraje. Mas a tempestade passou rapidamente.

Os israelenses já conhecem os números e a maioria já tem uma opinião formada a respeito. Muitos israelenses de classe média estão convencidos de que a culpa é dos próprios pobres --e a menos que eles façam alguma coisa a respeito, não há muito o que o Estado possa fazer por eles.

Dois segmentos da população de Israel se destacam como os mais pobres dos pobres: "os judeus ultraortodoxos" e os "árabes muçulmanos". As taxas de desemprego entre os judeus ultraortodoxos (a maioria homens ultraortodoxos) e árabes (a maioria mulheres árabes) são muito altas. Assim como as taxas de natalidade. O resultado: 59% dos ultraortodoxos são pobres. Igualmente, 58% dos árabes israelenses são pobres. Outros grupos com índices notadamente altos de pobreza são os idosos e os novos imigrantes --mas os números para esses dois grupos são muito menores, 23% e 17%, respectivamente.

A pobreza de Israel não deriva exclusivamente da falta de participação plena desses dois grupos em sua vida econômica. Mas a alta visibilidade entre os ultraortodoxos e árabes pobres influencia o debate público sem fim sobre como colocar um fim à pobreza.

Fomentar um senso de solidariedade social entre os israelenses de classe média em relação a esses grupos é difícil por vários motivos. Primeiro, os ultraortodoxos e árabes não se misturam muito com a maioria dos judeus israelenses (ambos os grupos não servem nas forças armadas e nem participam de outros serviços nacionais). Segundo, para ser franco, os israelenses sabem que os ultraortodoxos e os árabes estão desproporcionalmente representados na economia informal (para escapar dos impostos).
Finalmente, em grande parte eles são pobres por causa das escolhas que fazem --preferindo suas tradições em vez de participarem na economia israelense moderna. Colocando de modo simples, para os homens judeus ultraortodoxos, a escolha geralmente é estudar a Torá e ter muitos filhos (enquanto as mulheres precisam sustentar as famílias). Para os árabes muçulmanos, é manter as mulheres em casa e ter muitos filhos (enquanto os homens saem para trabalhar).

Todo país e toda sociedade tem um problema de solidariedade entre ricos e pobres. Mas em Israel, os rachas da sociedade ao longo das divisões étnicas e religiosas são exacerbados pela falta de confiança entre os grupos diferentes. Isso torna a pobreza em Israel muito mais problemática.

O judeu ultraortodoxo não é diferente apenas nos costumes; ele também tende a ter um número muito maior de filhos do que poderia criar convenientemente com uma renda baixa. O beduíno árabe não é diferente apenas étnica e religiosamente da maioria dos israelenses; ele também é mais pobre, em algumas áreas extremamente pobre. Judeus e árabes têm muitas questões que os separam; os rachas econômicos adicionam lenha à fogueira. Judeus seculares e ultraortodoxos têm questões que os dividem; a pobreza também adiciona lenha a essa fogueira.

Para que uma pessoa em boa situação financeira se importe mais com a pobreza de Israel, ela primeiro teria que ser convencida de que medidas necessárias foram tomadas para eliminar a pobreza por opção.

Apenas quando os homens ultraortodoxos e as mulheres árabes desempregados trabalharem e aqueles que atuam no mercado negro forem forçados a pagar impostos é que as classes média e alta estarão mais dispostas a pensar em uma redistribuição de renda. No momento, a maioria dos israelenses tem um bom motivo --ou uma boa desculpa-- para fazer objeção a qualquer tentativa de redistribuição que tire deles para dar para outros.

Há algumas boas notícias. Em consequência direta das políticas do governo, a taxa de emprego entre as populações tradicionalmente desempregadas está subindo rapidamente. Por outro lado, precisamente por causa dessa tendência, o percentual de famílias pobres com dois provedores também subirá (foi de 5% no último relatório). Os trabalhadores pouco qualificados estão finalmente ingressando na força de trabalho, mas naturalmente só podem conseguir trabalhos de baixa remuneração e não conseguem ganhar o suficiente para arcarem com suas despesas e subir acima da linha de pobreza. É claro, isso envia uma mensagem potencialmente devastadora para aqueles que ainda estão desempregados, a de que trabalhar não vale a pena.

Para que os israelenses de classe média se importem, a mensagem do Estado deveria ser bem diferente --uma que poderia ser chamada de crueldade compassiva. O Estado deveria dizer aos seus cidadãos: nós não nos importamos se o pobre por opção fique ainda mais pobre e receba ainda menos do Estado. Nós não nos importamos com as taxas de pobreza que todos levam em consideração, sem muita consideração pelas decisões pessoais e comunitárias e suas consequências. Mas asseguraremos que aqueles dispostos a trabalhar e pagar seus impostos sejam auxiliados apropriadamente, e o governo assegurará para que apenas eles sejam erguidos acima do nível de pobreza com recursos do governo.

Fonte: http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/herald/2013/12/28/pobreza-em-israel-e-intensificada-por-questoes-religiosas.htm

* Shmuel Rosner é o editor de política do "The Jewish Journal" e membro do Instituto de Políticas para o Povo Judeu.

Tradutor: George El Khouri Andolfato

sexta-feira, 28 de março de 2014

AS DÚVIDAS SOBRE O AMOR



A pista pode ser fornecida por uma das exigências ideais, tal como as denominamos, da sociedade civilizada. Diz ela: ‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo.’ Essa exigência, conhecida em todo o mundo, é, indubitavelmente, mais antiga que o cristianismo, que a apresenta como sua reivindicação mais gloriosa. No entanto, ela não é decerto excessivamente antiga; mesmo já em tempos históricos, ainda era estranha à humanidade. Se adotarmos uma atitude ingênua para com ela, como se a estivéssemos ouvindo pela primeira vez, não poderemos reprimir um sentimento de surpresa e perplexidade. Por que deveremos agir desse modo? Que bem isso nos trará? Acima de tudo, como conseguiremos agir desse modo? Como isso pode ser possível? Meu amor, para mim, é algo de valioso, que eu não devo jogar fora sem reflexão. A máxima me impõe deveres para cujo cumprimento devo estar preparado e disposto a efetuar sacrifícios. Se amo uma pessoa, ela tem de merecer meu amor de alguma maneira. (Não estou levando em consideração o uso que dela posso fazer, nem sua possível significação para mim como objeto sexual, de uma vez que nenhum desses dois tipos de relacionamento entra em questão onde o preceito de amar meu próximo se acha em jogo.) Ela merecerá meu amor, se for de tal modo semelhante a mim, em aspectos importantes, que eu me possa amar nela; merecê-lo-á também, se for de tal modo mais perfeita do que eu, que nela eu possa amar meu ideal de meu próprio eu (self). Terei ainda de amá-la, se for o filho de meu amigo, já que o sofrimento que este sentiria se algum dano lhe ocorresse seria meu sofrimento também – eu teria de partilhá-lo. Mas, se essa pessoa for um estranho para mim e não conseguir atrair-me por um de seus próprios valores, ou por qualquer significação que já possa ter adquirido para a minha vida emocional, me será muito difícil amá-la. Na verdade, eu estaria errado agindo assim, pois meu amor é valorizado por todos os meus como um sinal de minha preferência por eles, e seria injusto para com eles, colocar um estranho no mesmo plano em que eles estão. Se, no entanto, devo amá-lo (com esse amor universal) meramente porque ele também é um habitante da Terra, assim como o são um inseto, uma minhoca ou uma serpente, receio então que só uma pequena quantidade de meu amor caberá à sua parte – e não, em hipótese alguma, tanto quanto, pelo julgamento de minha razão, tenho o direito de reter para mim. Qual é o sentido de um preceito enunciado com tanta solenidade, se seu cumprimento não pode ser recomendado como razoável?

Através de um exame mais detalhado, descubro ainda outras dificuldades. Não meramente esse estranho é, em geral, indigno de meu amor; honestamente, tenho de confessar que ele possui mais direito a minha hostilidade e, até mesmo, meu ódio. Não parece apresentar o mais leve traço de amor por mim e não demonstra a mínima consideração para comigo. Se disso ele puder auferir uma vantagem qualquer, não hesitará em me prejudicar; tampouco pergunta a si mesmo se a vantagem assim obtida contém alguma proporção com a extensão do dano que causa em mim. Na verdade, não precisa nem mesmo auferir alguma vantagem; se puder satisfazer qualquer tipo de desejo com isso, não se importará em escarnecer de mim, em me insultar, me caluniar e me mostrar a superioridade de seu poder, e, quanto mais seguro se sentir e mais desamparado eu for, mais, com certeza, posso esperar que se comporte dessa maneira para comigo. Caso se conduza de modo diferente, caso mostre consideração e tolerância como um estranho, estou pronto a tratá-lo da mesma forma, em todo e qualquer caso e inteiramente fora de todo e qualquer preceito. Na verdade, se aquele imponente mandamento dissesse ‘Ama a teu próximo como este te ama’, eu não lhe faria objeções. E há um segundo mandamento que me parece mais incompreensível ainda e que desperta em mim uma oposição mais forte ainda. Trata-se do mandamento ‘Ama os teus inimigos’. Refletindo sobre ele, no entanto, percebo que estou errado em considerá-lo como uma imposição maior. No fundo, é a mesma coisa. Acho que agora posso ouvir uma voz solene me repreendendo: ‘É precisamente porque teu próximo não é digno de amor, mas, pelo contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo’. Compreendo então que se trata de um caso semelhante ao do Credo quia absurdum. Ora, é muito provável que meu próximo, quando lhe for prescrito que me ame como a si mesmo, responda exatamente como o fiz e me rejeite pelas mesmas razões. Espero que não tenha os mesmos fundamentos objetivos para fazê-lo, mas terá a mesma idéia que tenho. Ainda assim, o comportamento dos seres humanos apresenta diferenças que a ética, desprezando o fato de que tais diferenças são determinadas, classifica como ‘boas’ ou ‘más’. Enquanto essas inegáveis diferenças não forem removidas, a obediência às elevadas exigências éticas acarreta prejuízos aos objetivos da civilização, por incentivar o ser mau. Não podemos deixar de lembrar um incidente ocorrido na câmara dos deputados francesa, quando a pena capital estava em debate. Um dos membros acabara de defender apaixonadamente a abolição dela e seu discurso estava sendo recebido com tumultuosos aplausos, quando uma voz vinda do plenário exclamou: ‘Que messieurs les assassins commencent!

O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. – Homo homini lupus. Quem, em face de toda sua experiência da vida e da história, terá a coragem de discutir essa asserção? Via de regra, essa cruel agressividade espera por alguma provocação, ou se coloca a serviço de algum outro intuito, cujo objetivo também poderia ter sido alcançado por medidas mais brandas. Em circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças mentais contrárias que normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também se manifesta espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho. Quem quer que relembre as atrocidades cometidas durante as migrações raciais ou as invasões dos hunos, ou pelos povos conhecidos como mongóis sob a chefia de Gengis Khan e Tamerlão, ou na captura de Jerusalém pelos piedosos cruzados, ou mesmo, na verdade, os horrores da recente guerra mundial, quem quer que relembre tais coisas terá de se curvar humildemente ante a verdade dessa opinião.


EXTRAÍDO DO LIVRO:

O MAL ESTAR DA CULTURA
S. FREUD
EDITORA LP&M
PÁGINAS 119 À 124