Rev. Padre Jorge Aquino
(Movimento Anglicano no
Brasil)
Quando
pensamos na relação entre os dogmas e o anglicanismo temos que ser bem
cautelosos. Para tanto, procuraremos, em primeiro lugar, fazer uma aproximação
histórica, em segundo lugar tentaremos compreender a idéia de Dogma e, finalmente, procuraremos ver de
que forma esta idéia de Dogma se
reflete no anglicanismo.
Aspectos históricos
Em primeiro
lugar, devemos fazer referência às teses defendidas por Harnack que ficou
popularizada nas ultimas décadas do século XIX e que permaneceu até boa parte
do século XX. Lohse (1981, p.7), discutindo este tema, nos lembra que
Harnack vê na
história da formação do dogma um processo de decadência que acabou conduzindo à
helenização do cristianismo. Torna-se, pois, na opinião de Harnack, necessário
superar esse processo, o que, por sua vez, levaria a uma fé destituída de
dogmas tal qual pode ser constatada nos princípios da igreja, correspondendo
tão somente à essência do cristianismo destituído de dogmas.
Similarmente,
e como consequência das idéias de Harnack aplicadas à cristologia, afirma
Gerhard Ebeling “Cristologicamente nada deve ser dito a respeito de Jesus, que
não se restrinja a dizer quem o Jesus Histórico é” (EBELING In LOHSE, 1981, p.7).
A crença,
comum nestes dias, de que devemos buscar um cristianismo destituído de dogmas
se funda em pelo menos três teses apresentadas por Bernhard Lohse. Em primeiro
lugar porque é absolutamente possível “ser um bom cristão mesmo não crendo em
determinados dogmas” (LOHSE, 1981, p.8). Este pensamento foi muito popularizado
no fim do século XIX principalmente no clássico “Em seus passos o que faria Jesus?”. No entanto entre os autores
laicos esta tese também encontrou guarida. Podemos citar, por exemplo a obra do
pensador russo Leo Tolstoi que pretendida estabelecer o Sermão da Montanha como parâmetro para o comportamento e a vida dos
cristãos.
Em segundo
lugar Lohse levanta a tese de que os dogmas não devem ser levados em tanta
conta que “eles surgiram numa determinada situação que, na sua maneira, é única
e irrepetível, e que, por essa razão, estão condicionados ás situações
históricas como tudo o que existe em nosso mundo” (LOHSE, 1981, p.8). De fato,
somente durante o Iluminismo é que teólogos como Lessing dará importância a
estes aspectos historiográficos. De fato não há como negar que todas as
verdades têm sua história (Wilhelm Dilthey) e que esta história se relaciona
com sei sitz in lebem (contexto
vital). Desta forma, é impossível não perceber a influência do contexto
intelectual helênico na formulação dos primeiros dogmas cristãos.
Em terceiro
lugar, Lohse apresenta a opinião de que os teólogos sistemáticos “quase sempre
não conseguem manter sua posição quando comparados com a Bíblia” (LOHSE, 1981,
p.9). De fato, enquanto a linguagem bíblica faz uso de categorias pessoais, a
dogmática tende a utilizar termos oriundos da ontologia. Em outras palavras, a
dogmática é fruto da contaminação da teologia bíblica com os elementos da
cultura grega.
Definição de Dogma
De certa
forma definir o termo “Dogma” não é tão difícil. Sabemos que ele deriva do
grego dokein, o qual, na expressão dokein moi,
afirma Berkhof, podemos encontrar o seguinte significado: “determinei
definitivamente algo de modo que para mim é fato estabelecido” (BERKHOF, 1992,
p. 17).
Em geral, o
termo “Dogma” é compreendido como “um ensino doutrinário oficial da igreja
cristã” (PELIKAN, J. Apud COHEN &
HALVERSON, 1980. p. 80). Do ponto de vista bíblico, sabemos que embora esta
palavra apareça cinco vezes no Novo Testamento, ela só tem essa conotação em At
16:4, e aqui, seu sentido é muito mais voltado para aspectos que envolvem a
ética e as decisões cerimoniais. Podemos, então, ficar com a definição de Lohse
para quem dogmas são “enunciados
doutrinais, análogos às proposições de uma determinada escola filosófica”
(LOHSE, 1981, p.10).
Em seu texto
sobre a história do dogma, Lohse também apresenta a definição católica-romana para
“dogma” usando as palavras do teólogo jesuíta A. Deneffe, que afirma:
O dogma é uma
verdade que, de acordo com seu conteúdo objetivo, foi revelado por Deus e
definida pela igreja, seja através de decretos conciliares ou decisões “ex
cathedra” do Papa ou, ainda, através do mero fato de geralmente ter sido
ensinada na igreja (DENEFFE In LOHSE,
1981, p.11).
Dentre os
teólogos de tradição protestantes podemos encontrar na figura de Adolf Von Harnack,
um dos maiores historiadores do dogma, a seguinte definição:
Os dogmas da
igreja são as doutrinas cristãs da fé, logicamente formuladas e expressa como
proposições cientificas e apologéticas; (...) Nas igrejas cristãs eles são
considerados verdades contidas nas Sagradas Escrituras (ou na tradição) que
circunscrevem o “depositum fidei”, cujo reconhecimento constitui a condição
prévia para a santidade prometida pela religião (HARNACK In LOHSE, 1981, p.11).
Teólogos
mais recentes como Walter Koehler e Martin Werner, discordando de Harnack,
entendem que “dogma” é simplesmente a “expressão predominante da fé da
comunidade referente ao conteúdo da revelação cristã” (In LOHSE, 1981, p.12). Para estes autores o mais importante nem
seria o reconhecimento oficial ou a legitimação da igreja para a existência de
um dogma. Bastava a auto-consciência cristã.
Para o
teólogo suíço Karl Bart, visto por Bernard Ramm (1975, p. 42) como aquele que,
mais do que qualquer outro teólogo, foi quem mais escreveu sobre dogma, o dogma
deve ser visto como “a conformidade da proclamação da igreja... com a revelação
testemunhada nas Sagradas Escrituras” (BARTH In LOHSE, 1981, p.12). Asseverando, ainda o que afirmou o teólogo
suíço, continua ele:
a norma
dogmática, isto é, a norma pela qual a dogmática deve recordar a proclamação da
igreja, e portanto em si, antes de tudo, como a possibilidade objetiva da
doutrina pura, não pode ser outra que a revelação testemunhada nas Sagradas
escrituras como Palavra de Deus” (BARTH, In
RAMM, 1975, p. 42).
Pelas
definições apresentadas acima, pode-se ver uma certa familiaridade entre o
conceito de “dogma” e o de “tradição”. J.N.D. Kelly, Por exemplo, nos diz que:
No sentido
atual da palavra, “tradição” denota o corpo de doutrinas não-escritas
transmitidas pela igreja ou a transmissão de tais doutrinas e, desse modo,
costuma estar em contraste com as Escrituras. Na linguagem dos pais, como aliás,
também ocorre no Novo Testamento, obviamente o termo continha essa idéia de
transmissão e, por fim, o sentido moderno tornou-se comum. Mas seu significado
básico (cf. paradidonai; tradere), a saber, o pronunciamento
feito com autoridade, estava, em sua origem, em primeiro plano e sempre
permaneceu em destaque. Por isso, em geral, para os pais, “tradição” significa
a doutrina que o Senhor ou Seus Apóstolos entregaram à igreja, não importando
se foi transmitida oralmente ou em documentos; além disso, pelo menos nos
primeiros séculos, eles preferem empregar outras palavras para designar o
ensino tradicional não-escrito da igreja. O significado antigo do termo é bem
ilustrado na referência de Atannásio “à tradição, ao ensino e à fé verdadeira e
originais da igreja Católica, que o Senhor outorgou, os apóstolos proclamaram e
os pais preservaram” (KELLY, 1993, p.22).
Ao afirmar
um certo parentesco ente o “dogma” e a “tradição” uma questão logo se impõe: é
possível a existência de novos dogmas? Para a igreja romana a resposta é
positiva. Nos últimos 150 anos ela criou três dogmas bastante conhecidos: a
infalibilidade papal e a Imaculada Conceição de Maria, no século XIX e a
Assunção de Maria no século XX.
Para a
tradição das igrejas ortodoxas, entretanto, a formulação dos dogmas está encerrada.
Este encerramento se deu no 2º Concílio de Nicéia (787 a.D.), que foi o sétimo
e ultimo Concílio Ecumênico, ou seja, aceito por todas as igrejas, tanto a de
Roma quanto a ortodoxa.
Ora, uma vez
que em 1054 ocorreu o Grande Cisma Oriental, criando o que conhecemos hoje como
a igreja católica romana e a igreja ortodoxa, já não temos mais uma igreja uma,
logo, é impossível recriar dogmas sem a plena ecumenicidade da igreja.
Entre os
seguidores da reforma ocorre algo interessante e ambíguo. Por um lado há uma
unanimidade de que somente os primeiros “quatro concílios foram genuinamente
representantes de toda a igreja e, desta forma, eles usam a palavra Dogma de
forma restrita, aplicando-as à doutrina da Trindade e às formulações cristológicas
oriundas destes quatro concílios” (HARVEY, 1964, p. 72). Por outro lado há
doutrinas particulares que os distinguem dos católicos e de certas crenças que
se proliferaram a partir do século XVI que faz com que os reformados assumam a
existência do que poderíamos chama de “dogmas menores”.
Para os
Reformadores a tese de uma igreja que sempre se reformava fez com que surgisse
um segundo momento de criação confessional. Surgiram, neste momento, inúmeras Confissões
de Fé no seio da igreja Reformada. Dentre elas estão: a Confissão de fé Fluminense,
escrita no Brasil em 1558; a Confissão de fé Francesa (ou Gaulesa ou de La Rochelle), escrita de 1559; a
Confissão de fé Escocesa de 1560; os Padrões de Fé da Igreja Reformada
Holandesa (Confissão Belga de 1561, Catecismo de Heidelberg de 1563, Cânones de
Dort de 1619); a Segunda Confissão Helvética, de 1566; os 39 Artigos de
Religião de 1571; a Confissão de fé de Westminster de 1646; Catecismo Maior e
Breve catecismo de Westminster, de 1649; a Declaração de Savoy, de 1658 e a
Confissão de fé Batista de 1689.
O que é
interessante é que enquanto os quatro primeiros Concílios Ecumênicos se mantêm
incólume, uma série de outras questões – notadamente na área da soteriolgia e
da eclesiologia passam a assumir o papel central no debate teológico.
A experiência anglicana
Os
anglicanos são muito influenciados pela tradição protestante ainda que alguns
também afirmem que os dogmas cessaram com o sétimo Concílio Ecumênico, como os
ortodoxos. Desta forma um anglicano clássico não teria dificuldades em assinar
a afirmação de Alfredo Borges Teixeira quando diz que por ocasião da Reforma
vemos que a igreja mostrou: “a necessidade que tem a Igreja de periodicamente
ajustar o seu credo às Escrituras e aplicar a estas as suas experiências e
progresso na capacidade de entendê-la” (TEIXEIRA, 1986, p. 52).
Discordando
da igreja romana, como os protestantes, os anglicanos não acreditam na
infalibilidade dos Credos, e também afirmam que os “Credos e Confissões de Fé
representam, pois, o entendimento que a Igreja tem das doutrinas cristãs e o
sentido em que ela autoriza a pregá-las” (TEIXEIRA, 1986, p. 52).
Teixeira
mostra que entre os reformados a palavra “dogma” sofreu uma certa oposição.
Isto ocorreu em razão da crença romana na infalibilidade e imutabilidade de
suas crenças e doutrinas, ou seja, na forma intransigente de tratar temas
teológicos.
Na base
desta oposição está a crença de que a mensagem da Igreja não pode ser comparada
a um lago cujas águas terão, sempre, o mesmo nível sem jamais se alterar. Muito
ao contrário, preceitua Teixeira (1986, p. 53), a Palavra de Deus registrada
nas Escrituras está sujeita ao dinamismo da Palavra transcendente, ou seja, o
Verbo eterno, que por meio do Espírito Santo põe na boca de cada pregador, em
cada época e lugar, as expressões adequadas às necessidades humanas. Afirmar
isso é afirmar que o entendimento das Escrituras é tão progressivo e
historicamente determinado quanto a própria revelação feita por Deus.
A igreja
precisa, portanto, reconhecer nas Escrituras um fundamento sólido para suas
crenças. Mas também precisa compreender que a leitura destas Escrituras são
historicamente condicionadas e produzem doutrinas em cada instante da história.
Isto revela que a tradição, ou o dogma, não é estático como uma pedra, mas
dinâmica vez que movida pelas realidades e peculiaridades históricas. É por
isso que um dos lemas propostos pela igreja da Reforma afirmava: “Ecclesia
reformata semper reformanda”.
Entre os anglicanos esta renovação da teologia, e portanto, da
interpretação – e da formação do próprio dogma - se dá por meio do tripé:
Escritura, Razão, Tradição. Esta postura foi um legado da elaboração teológica
transmitida pelo eminente teólogo Richard Hooker (1554-1600) no século XVII, na
tentativa de criar uma igreja de via média. Desta forma, Hooker tanto
procurou evitar a posição romana de que a sola escriptura é insuficiente
e que a tradição deve suprir todas as lacuna, mas também a posição puritana de
que toda decisão eclesial que não tenha respaldo bíblico é pecaminosa.
Em outras palavras, Hooker foi o responsável pela ênfase na tolerância
e na razão na formação teológica. É claro que esta postura ocorreu dentro de um
contexto que ficou conhecido como “escolástica protestante”, na qual Filipe
Melancthon (1497-1560) entre os luteranos e Teodoro Beza (1519-1605) entre os
calvinistas, são seus principais representantes. A “escolástica protestante”
foi uma tendência que abandonou a intransigência dos Reformadores frente às
sistematizações teológicas e resgatou a visão aristotélica como instrumento no
aspecto metodológico e de conteúdo, para a formação teológica.
Parece-nos que a via média de Hooker foi mais adiante do que a
“escolástica protestante” porque ele sustentava, simultaneamente, a importância
da Razão, das Escrituras e da Tradição.
Por um lado, nenhum anglicano pode esquecer das palavras do Artigo 6º
dos 39 Artigos de Religião que afirmam que as “Sagradas escrituras contém todas
as coisas necessárias para a salvação”. Portanto, as escrituras assumem um
papel importantíssimo e fundante na teologia anglicana.
Ora, com base neste conteúdo inspirado e dinâmico da Bíblia a igreja
acabou por produzir, como resultado de sua comunhão viva com Deus em Cristo,
doutrinas e dogmas, liturgias, cânones e uma disciplina e um ensino moral e
espiritual. “Este acúmulo da doutrina, disciplina e adoração na Igreja viva,
através dos séculos pode ser chamado de Tradição da Igreja” (WTL, 1998, p.41).
Este segundo elemento é a segunda base do tripé da teologia anglicana.
Mas para Hooker havia um terceiro elemento fundamental: a razão ou o
bom senso. E outras palavras, ele levou a sério a capacidade do leitor em fazer
uma leitura crítica, histórica e contextual das Escrituras, assumindo,
inclusive a importância de uma aplicação pastoral desta leitura.
Hooker foi o responsável pela aplicação da noção de “questões
indiferentes” – ou adiáphoras – na teologia para combater o puritanismo.
Para rebater este pensamento que afirmava que “qualquer coisa introduzida à
igreja sem fundamento bíblico, é pecaminoso”, Hooker dizia que “nada que
contrarie as escrituras pode ser aceito”. Em outras palavras, Hooker entendia
que os puritanos interpretavam mal as Escrituras e que elas permitem à igreja
que introduza coisas “indiferentes”, ou seja, coisas não proibidas pelas
Escrituras e que a prudência entendia como benéfico para à adoração e o governo
da igreja, em determinadas circunstâncias.
Em segundo lugar, Hooker negava que o modelo da igreja do Novo
testamento fosse permanente e obrigatório uma vez que as informações advindas
das Escrituras sobre este tema eram insuficientes, incompletas e não decisivas.
Sabendo disso, os anglicanos são totalmente reformados ao afirmar a fé
da Igreja indivisa resumida nos primeiros quatro Concílios Ecumênicos, mas
também não teve qualquer dificuldade em, diante das necessidades que o
Movimento Ecumênico do século XIX faziam, estabelecer critérios práticos (não
dogmáticos) para este diálogo. Estes critérios passaram a ser chamados de
Quadrilátero de Chicago-Lambeth (1886/88).
Da mesma forma, também não teve qualquer dificuldade em, apesar de não
haver qualquer referência nos 39 Artigos de religião, ressaltar com bastante
força a importância da Sucessão Apostólica, que acabou por assumir um lócus
privilegiado na teologia anglicana contemporânea.
Finalmente, a postura “reformada aberta” associada à tese adiáphora,
que caracteriza o anglicanismo evita que este movimento assuma uma posição
que visa “patrulhar” o pensamento dos teólogos e leigos. Afinal, quando
“dogmas” são formulados, os discordantes são identificados como heterodoxos
e, portanto, pode ser alvo de qualquer espécie de inquisição. Afinal, como
afirmava um antigo companheiro de ministério, “no anglicanismo, discordar é um
direito, não um delito”.
Referências bibliográficas
BERKHOF, Louis.
A história das doutrinas cristãs. São Paulo: PES, 1992
COHEN,
Arthur; HALVERSON, Marvin. A Handbook of Christian theology. World pub: 1980.
HARVEY, Van
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LOHSE,
Bernhard. A fé cristã através dos tempos. São Leopoldo: Sinodal, 1981.
KELLY,
J.N.D. Doutrinas centrais da fé cristã. São Paulo, Vida Nova: 1993
RAMM,
Bernard. Diccionario de teologia contemporânea. Casa bautista de publicaciones:
sl, 1975.
TEIXEIRA,
Alfredo Borges. Dogmática Evangélica. São Paulo: Pendão Real, 1986
The way, the
truth and the life: the anglican walk with Jesus christ. Charlottetown, Canada,
St Peter Publications: 1998.