Levantemos
os seguintes questionamentos: o que é o poder e como ele se manifesta
nas instituições? Este problema pode ser dividido em duas questões
fundamentais para a compreensão do nosso tema. A primeira, de base
introdutória, consiste em saber o que é poder para Foucault, ou melhor,
como ele entende o poder. E a segunda é como o poder se exerce dentro
das instituições, especificamente a escola. Bem, colocar essas questões
pode nos levar por inúmeros caminhos, seja porque Foucault é um pensador
plural e sua obra é de uma riqueza imensa, ou seja, por seu pensamento
ser transversal, perpassando várias das “ciências humanas”, como a
filosofia, a psicologia, o direito, a história e a sociologia.
O nosso objetivo não é de nos fecharmos em uma definição do
pensamento de Foucault em torno da temática do poder, mas sim o de expor
algumas idéias relativas à juventude e à relação que esta tem com “o
poder” em suas vivências escolares, com base no pensamento do referido
autor. E também, como visa a primeira questão, saber o que é “o poder”
para o pensador, como ele lida com essa questão.
A questão do poder aparece na obra de Foucault em um momento de
transição de seus estudos: do período arqueológico, que é voltado para
os problemas concernentes “… à constituição dos saberes e
inclui os principais livros publicados na década de 1960: A história da
loucura (1961), O nascimento da clínica (1963), As palavras e as coisas
(1966) e A arqueologia do saber (1969)” (MUCHAIL, 2004: 9), ao segundo período, o genealógico. Este “…
é centrado sobre as questões relativas aos mecanismos do poder e inclui
os principais livros da década de 1970: Vigiar e punir (1975) e o
volume I da História da sexualidade, intitulado A vontade de saber
(1976).” (MUCHAIL, 2004: 10). De acordo com Roberto Machado (1985)o surgimento da questão do poder, é “… uma
reformulação de objetivos teóricos e políticos que, se não estavam
ausentes dos primeiros livros, ao menos não eram explicitamente
colocados, complementando o exercício de uma arqueologia do saber pelo
projeto de uma genealogia do poder.”(MACHADO, 1985: 7)
A forma como Foucault aborda o poder é muito peculiar, pois este não é
algo físico e palpável, ou uma idéia bem definida, ou até mesmo um
conceito fixo e estável. Ele mesmo fala do poder como uma coisa
enigmática queé“… ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculta, investida em toda parte…”(FOUCAULT,
1985: 75).É válido acrescentar que o poder, enquanto objeto de estudo,
em sua obra denota um nominalismo, porque este “… é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada.” (FOUCAULT, 1999: 89), modo como ele se refere ao poder em um de seus livros do período genealógico.
Trata-se, portanto, de uma questão muito importante em seus estudos que,
num primeiro momento, fora abordada de forma implícita, onde o objetivo
era descrever as relações de poder; já num segundo momento a analítica
do poder aparece de forma mais explícita e declarada, com o objetivo de
compreender o surgimento dos saberes e sua relação com o poder,
complementando assim o projeto de uma genealogia do poder como vimos
acima.
Se tentarmos responder à questão colocada – ‘o que é poder para
Foucault? ’ – não teremos tanto sucesso, pois não encontramos uma teoria
do poder no autor, “O que significa dizer que suas análises não
consideram o poder como uma realidade que possua uma natureza, uma
essência que ele procuraria definir por suas características
universais.” (MACHADO, 1985: 10). ‘O Poder’ não existe, o que existe são relações de poder, isto é,“… formas
díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um
objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída
historicamente.” (MACHADO, 1985: 10).
Na verdade, o que constitui o objeto de estudo de Foucault são as
práticas sociais nas quais se desenvolvem relações de poder, ou seja, o
poder deve ser visto como uma relação de forças que se exerce em todo o
tecido social. De acordo com esta idéia, vejamos o que Gilles Deleuze
(1988) diz a respeito do que é o poder na perspectiva de Foucault:
… o poder é uma relação de forças, ou melhor toda relação de
forças é uma “relação de poder”. Compreendamos primeiramente que o poder
não é uma forma, por exemplo, a forma-Estado; e que a relação de poder
não se estabelece entre duas formas, como o saber. Em segundo lugar, a
força não esta nunca no singular, ela tem como característica essencial
estar em relação com outras forças, de forma que toda força já é
relação, isto é, poder. (DELEUZE, 1988: 78).
Compreende-se então que esta relação de forças, que é o poder, é
sempre uma situação estratégica onde estamos uns em relação aos outros e
de acordo com Foucault (1984) “só existe o poder que se exerce por
uns sobre os outros; o poder só existe no ato, mesmo se ele se inscreve
num campo de possibilidades em desordem que se apóiam em estruturas
permanentes.” (FOUCAULT, 1984: 10).Por exemplo, as vivências dos
jovens nas instituições escolares estão imbuídas de relações de forças,
na medida em que sofre as ações do exercício dos poderes dentro desse
campo de possibilidades que é a escola, uma instituição que tem o
papel de formar, informar, moldar, preparar, impor e transmitir por
meio de uma série de procedimentos de poder: confinamento, vigilância,
recompensa e punição e hierarquia piramidal (Foucault, 1984). Os
estudantes que aí estão são apenas agentes passivos, recebendo estas
ações de acordo com o que lhe é esperado. Tudo isso em uma espécie de
guerra ou combate (onde há uma demonstração de forças entre os
indivíduos), ou seja, entre os especialistas que trabalham na escola e
os alunos que nele estudam. Ressaltamos também que a força enquanto
ralação de poder “é ‘uma ação sobre a ação, sobre as ações eventuais,
ou atuais, futuras ou presentes’, é ‘um conjunto de ações sobre ações
possíveis’.” (DELEUZE, 1988: 78 e 79). A respeito disto o próprio Foucault (1984) diz que o poder:
É um conjunto de ações sobre ações possíveis: ele opera sobre o
campo de possibilidades aonde se vêm inscrever o comportamento dos
sujeitos atuantes: ele incita, ele induz, ele contorna, ele facilita ou
torna mais difícil, ele alarga ou limita, ele torna mais ou menos
provável; no limite ele constrange ou impede completamente; mas ele é
sempre uma maneira de agir sobre um ou sobre sujeitos atuantes, enquanto
eles agem ou são susceptíveis de agir. Uma ação sobre ações. (FOUCAULT, 1984: 11)
Ações estas às quais foram, estão ou vão ser
submetidos todos os agentes educacionais numa instituição escolar.
Foucault (1982) afirma que não podemos nos lançar fora das situações e
que em nenhum lugar estamos livres de toda a relação de poder
. Então
se estamos todos submetidos às relações de poder, como dito acima, deve
haver uma forma de enfrentá-las, de reagir, ou melhor, de resistir.
Indo ao encontro com uma afirmação do pensador em uma entrevista
concedida ao
The Advocate (uma revista
estadunidense dedicada à comunidade
LGBT
desde 1969) onde ele discorre sobre poder e resistência, entendemos que
o poder só se exerce onde há resistência a ele, e da mesma forma só há
resistência onde há relações de poder; se não há resistência, não há
relação de poder(FOUCAULT, 1982).
Contudo o poder não se dá, não se troca e muito menos se retoma, mas
se exerce, só existe em todos os lugares possíveis da sociedade
(FOUICAULT, 1985); numa referência ao exercício do poder, Machado (1985)
afirma que o os poderes, ou melhor, os micro-poderes se exercem em
níveis e instâncias variados da rede social, sendo eles interligados ou
não ao Estado, que fora considerado aparelho central de poder.
Para aprofundar esse questionamento acerca do que Foucault entende
por poder, devemos considerar um aspecto muito importante de suas
análises das relações de poder que consiste em saber como elas se dão,
ou, dito de outro modo, como o poder se exerce. Ele mesmo nos responde
ao afirma que “O poder funciona e se exerce em rede.” (FOUCAULT, 1985: 183) e no primeiro volume de História da sexualidade ele ainda afirma: “O poder está em toda parte; não porque englobe tudo, e sim porque provém de todos os lugares”(FOUCAULT,
1999: 89), ou seja, o poder espalha-se por todo o tecido social. Nas
palavras de Fernando Donner (2009) o poder para Foucault não esta
localizado em um lugar específico, em um único ponto, mas dissemina-se e
espalha-se por toda a estrutura social, funcionando como uma rede de
dispositivos ou mecanismos que a atravessam de modo que nada nem ninguém
escapam de suas malhas.
Segundo Michel Foucault:
Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em
posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo
inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em
outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles. Não
se trata de conceber o indivíduo como uma espécie de núcleo elementar,
átomo primitivo, matéria múltipla e inerte que o poder golpearia e sobre
o qual se aplicaria, submetendo os indivíduos ou estraçalhando−os.
Efetivamente, aquilo que faz com que um corpo, gestos, discursos e
desejos sejam identificados e constituídos enquanto indivíduos é um dos
primeiros efeitos de poder. Ou seja, o indivíduo não é o outro do poder:
é um de seus primeiros efeitos. O indivíduo é um efeito do poder e
simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de
transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele constituiu. (FOUCAULT, 1985: 183 – 184).
Percebe-se que os indivíduos não são totalmente passivos diante das
ações que constituem as relações de poder, porque estes não só são
afetados como também afetam, de acordo com as práticas sociais
desenvolvidas e na medida em que o poder passa por eles atravessando-os,
atingindo tudo e todos em sua realidade mais imediata. Logo ele
perpassa a vida cotidiana, penetra-a, atinge as vivências mais concretas
dos indivíduos. Acerca disso, acrescentemos: “Poder este que intervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos [...] penetrando na vida cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micro-poder ou sub-poder.”(MACHADO, 1985: 12).
Em um complemento, Foucault (1984) ainda afirma que:
Esta forma de poder exerce-se sobre a vida quotidiana imediata,
que classifica os indivíduos em categorias, os designa pela sua
individualidade própria, liga-os à sua identidade, impõe-lhes uma lei de
verdade que é necessário reconhecer e que os outros devem reconhecer
neles. É uma forma de poder que transforma os indivíduos em sujeitos. (FOUCAULT, 1984: 5).
É o que podemos chamar, em um sentido, de sujeição dos que são vistos
como objetos e, num outro sentido, a objetivação dos que se sujeitam.
Isto é realizado pela disciplina, que, segundo Foucault, fabrica indivíduos, tomando-os como objetos e como instrumentos de seu exercício.
Em suma, fechamos este artigo com as considerações de Foucault a respeito disso:
O individuo é sem dúvida o átomo fictício de uma representação
“ideológica” da sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa
tecnologia específica de poder que se chama a “disciplina”. Temos que
deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele
“exclui”, “reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”,
“esconde”. Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz
campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que
dele se pode ter se originam nessa produção. (FOUCAULT, 2009: 185).
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MACHADO, Roberto. “Por uma Genealogia do Poder”. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado Rio de Janeiro: Graal, 5 ed. 1985. 295 p.
MAGALHAES, Teresa Calvat de. A filosofia como discurso da modernidade. Revista Ética e Filosofia Política. Juiz de fora, MG, v. 2, n. 1, p. 29-64. 1997.
MUCHAIL, Salma Tannus. Foucault, Simplesmente: textos reunidos. São Paulo: Loyola, 2004. 138 p.
http://www.publikador.com/educacao/marcio/2014/07/o-poder-na-perspectiva-de-foucault/