A CRISTOLOGIA
A partir de hoje, e nos próximos três encontros,
estudaremos alguns temas de Cristologia e sobre seu lugar na Teologia
Sistemática. Nosso pressuposto básico, como já vimos, é o de que Deus não
permitiu, em sua graça, que permanecêssemos distante de si mas graciosamente se
revelou através da pessoa de Jesus Cristo. Cristo é, desta forma, a revelação
privilegiada de Deus; a maneira através da qual Deus pode ser um Deus conosco, ou um Deus para nós.
Nosso breve caminho sobre a cristologia será
trilhado em três momentos. Neste primeiro momento nos dedicaremos às questões
relativas ao grande debate existente entre o Jesus histórico e ao Cristo da fé.
Nas próximas aulas nos deteremos mais sobre sua pessoa e obra examinando o que
diz a Escritura e o dogma da Igreja.
I.
A problemática da Cristologia
contemporânea
1. O Início dos Problemas
Como introdução é importante destacar que boa parte
do século XIX foi gasto em um caloroso debate sobre a pessoa de Jesus. Houve
tanta discussão sobre o tema que muitos chamaram este período de “segundo
período de formulação cristológica”.
Todo este debate ocorreu em função da importância
que a história acabou por assumir neste período. Assim como acontecera com as
ciências da natureza, a história acabara de se constituir como uma ciência em
um clima de grande otimismo. Neste momento, diz Bernard Sesboüé, ela (a
história) ainda não possuía “consciência da complexidade dos problemas
colocados pela distância histórica entre o objeto estudado e o sujeito que o
estuda”.[1]
Sua abordagem também acreditava ser possível também um conhecimento positivo e
pleno de todos os fatos, acreditando poder chegar à verdade em toda a sua
coerência.
Sem
dúvida seria importante nos aprofundar sobre este debate no século XIX, no
entanto, por absoluta falta de espaço, e por acreditar que existe muito
material revelador em português, nosso tratamento deste período será apenas
pontual. Muitas contribuições para o debate cristológico ocorreu no século XIX,
e creio que é importante mencionar pelo menos os nomes de Hermann Reimarus
(1694-1768), reconhecido como o fundador do movimento biográfico; Heinrich
Paulus (1761-1851), que se caracterizou por tentar explicar cada milagre com
uma resposta convincente; David Friedrich Strauss (1808-1874), para quem a
história de Jesus nos evangelhos deve muito à mitologia; e Ernest Renan
(1823-1892), que apresentou a mais popular biografia de Jesus, escrita a partir
de uma perspectiva romântica.
A
distinção entre o “Jesus da história” e o “Cristo da fé”, no entanto, apareceu
pela primeira vez em um livro de M. Kähler chamado Der sogenannte historische Jesus und der geschichtliche, biblich
Christus, publicado em 1892. Deve-se, porém, a figura de Adolf Harnack, um
dos maiores historiadores do dogma, a popularização da dicotomia existente
entre a “pessoa humana de Jesus”, que nasceu, cresceu e morreu como todos os
demais mortais e o “Cristo da fé”, que seria o resultado da reflexão, da
elaboração teológica, e do desenvolvimento do dogma da Igreja, a partir de
categorias e pressupostos gregos. Este Cristo da fé era o resultado da pregação
da Igreja.
Segundo
Harnack, em seu livro a Essência do cristianismo, “o evangelho, como Jesus o
praticou, não anuncia o Filho, mas somente o Pai”.[2]
Toda tentativa posterior de apresentação de um “Cristo” com status já
estabelecido na Igreja, segundo ele, é influência helênica e deve ser
rejeitada.
Me
parece que o que pode ser encontrado na base desta crítica, é a imagem de um
mundo fechado para o transcendente, ou seja, uma postura racionalista que elimina
o “milagre” a priori como sendo algo
próprio de uma mente “inferior”.
Desta
forma, o pressuposto racionalista, associado com o método histórico-crítico e
com o desejo de harmonizar a fé cristã com a consciência cultural da época,
acabou por separar o personagem histórico (Jesus) do cerne da pregação
apostólica (Cristo).
2. As Possibilidades do encontro com Jesus
Mais
tarde, através dos trabalhos de Rudolf Bultmann (1884-1976), esta idéia recebeu
mais apoio quando este exegeta procura demonstrar que a mensagem apresentada
pelo Novo Testamento é “expressa, coerentemente com a antiga imagem mitológica:
encarnação de um ser preexistente, morte expiatória, ressurreição, descida aos
infernos, ascensão ao céu, retorno no final dos tempos”.[3]
O que
fazer diante deste conteúdo mítico no Novo Testamento? A resposta dada por
Bultmann é “demitizar”. Mas o que é isto? Ele responde: criticar a imagem do
mundo expressa no mito e, ao mesmo tempo, buscar sua verdadeira intenção. Este
era o problema com a teologia liberal, ela procurava demitizar destruindo o
mito e não interpretá-lo existencialmente.
Para
Bultmann, o Cristo da fé era resultado de uma produção mítica que deveria
sofrer este processo de demitização. Quanto ao Jesus histórico, ele era tanto
irrelevante quanto inacessível.
Diante a
afirmação de Bultmann de que o Jesus histórico é irrelevante para o cristo da
fé, Kaesemann, um de seus alunos, passa a assumir uma postura na qual procura
evitar simultaneamente a posição de Bultmann, o racionalismo e o
sobrenaturalismo, identificado por ele com um sacrificium intellectus.
Para
Kaesemann o Jesus histórico era importante para a igreja primitiva, uma vez que
esta demonstrou que pretendia evitar que o mito tomasse o lugar da história ou
que um ser celeste e gnóstico assumisse o lugar do homem de Nazaré.
Ele
compreende, com Bultmann, que a cruz e a ressurreição assume um lugar central
na fé da Igreja. Mas o Kerigma, ou a pregação da Igreja primitiva, só tem
sentido porque aponta para um fundamento histórico anterior à cruz. Portanto,
de alguma forma, podemos “acessar” o Jesus histórico. Ele não está de todo
perdido. Segundo Rosino Gibellini:
“Kaesemann afirma que o Jesus
histórico, ainda que não tenha jamais dito explicitamente ser o Messias, falou
e agiu, contudo, com tal autoridade que todos perceberam nele um ser superior.
Somente na proclamação da Igreja pós-pascal é que o implícito se torna
explícito”.[4]
A mesma
crítica é feita pelo teólogo francês O. Cullmann, para quem, Bultmann pretendeu
demitizar justamente aquilo que não é permitido demitizar, ou seja, os fatos da
história.
Outra
forte reação foi a de J. Jeremias, para quem Bultmann ameaça esvaziar a
mensagem evangélica daquele que é seu conteúdo central: a encarnação.
Segundo
este teólogo, a fixação de Bultmann por desconsiderar os textos evangélicos
como dignos de fé é tão forte que ele ameaça substituir Jesus por Paulo, na
exposição sobre o cristianismo. Para Jeremias, Bultmann não consegue entender
que Paulo sem Jesus é incompreensível. O que é pior, no entanto, é que ao
desconsiderar completamente o Jesus da história, Bultmann acaba por retornar ao
docetismo. Nas palavras de Prosper: “separar o querigma da história significa
cair nos excessos do docetismo ou do ebionitismo”.[5]
O início de nossa fé não pode ser identifiada apenas no kerígma, mas no fato
histórico da vida real de Jesus, ou seja, “o Jesus histórico está para o Cristo
da fé assim como a chamada para a resposta”.[6]
Ao afirmar a completa e radical diferença entre o Jesus histórico e o Cristo da
fé, Bultmann peca, porque elimina a causa que produz o efeito.
3. Considerações Relevantes
Diante do exposto acima, precisamos esclarecer
alguns pontos que julgamos relevantes para o estudo da Cristologia bíblica e
para uma aproximação adequada e relevante para o teólogo em nossos dias.
A. A
visão do Novo Testamento é mítica
Qualquer estudioso sério da história da ciência
compreende sem maiores complicações que os documentos bíblicos foram todos
escritos em um período pré-científicos e que, portanto, não se permitem estudar
com os mesmos instrumentos conceituais com que lemos, por exemplo, o jornal de
hoje.
É
verdade que nas Escrituras encontramos vários tipos de literatura, como por
exemplo, a prosa, a poesia e também o mito. É claro que as pessoas daquela
época possuíam uma idéia de mundo dividido em três pavimentos; é claro que eles
atribuíam aos deuses ou aos espíritos qualquer manifestação que hoje julgamos
natural, em função das informações de que dispomos; é óbvio que o
desconhecimento dos vírus e dos micróbios, faziam com que eles associassem a
doença à ação de espíritos malignos e que os feiticeiros possuíam também a
atribuição de curar. Mas com certeza, eles possuíam também a noção do que era
história e o respeito pelas ações de Deus dentro da história de seu povo.
O
problema com o racionalismo é que seus pressupostos anti-sobrenaturalistas de
um mundo fechado acabam por colocar nas histórias sobre Jesus ou o título de
fraude, ou o de mito. Ou como disse Domingo Muñoz León: “a pesquisa
racionalista sobre os evangelhos é crítica apriorística e fechada ao mundo
divino”.[7]
Creio
firmemente ser possível a convivência pacífica de uma concepção de mundo aberto
à ação de Deus e uma postura historico-crítica que respeite os diversos tipos
de textos e que utilize a demitização como ferramenta hermenêutica relevante,
respeitável e legítima.
B. A
mensagem da Igreja primitiva é comprometida
Tenho a impressão que uma leitura, mesmo não
acurada, dos textos do Novo Testamento podem revelar muito claramente que seus
autores não pretendiam escrever uma obra isenta de pressupostos ou prenoções. O
Novo Testamento não pretende apresentar informações isentas e neutras sobre a
pessoa de Jesus Cristo. Pelo contrário, quem escreve, escreve porque está, não
apenas comprometido com a pessoa, mas também porque qualquer postura neutra é
impossível. O próprio Bultmann já afirmou ser impossível a exegese livre de
pressupostos.
Os evangelistas, ao escreverem seus textos, não
pretendiam apresentar um trabalho jornalístico sobra a vida de Jesus. Os
evangelhos não são biografias conforme entendemos modernamente. Eles são
documentos comprometidos com uma pessoa e com um propósito teológico próprio e
particular. Cada um deles pretende falar a um publico diferente e por isso
“escolhem” os fatos que podem ser melhor trabalhados para atingir seu objetivo.
Como nos lembra René Latourelle: “essa mensagem não é neutra, mas proclamada no
contexto de um compromisso”.[8]
O único Jesus que pode ser encontrado nos textos dos evangelhos, é o Jesus que
é confessado e professado como Senhor.
Não queremos advogar a “neutralidade dos textos
bíblicos”. Pelo contrário, queremos admitir que havia compromisso da Igreja
primitiva com este Jesus, chamado Cristo. E sua pregação, além de comprometida
é o testemunho de fé de uma comunidade que recebe Jesus de Nazaré como o
Salvador, Senhor, Messias, Filho de Deus e em consequência disso, objeto de
louvor e adoração.
Mas, além disso, estes textos são também textos que
nos convidam ao compromisso. Há, portanto neles, uma intenção apologética e
evangelística. Há um convite ao compromisso.
Finalmente, precisamos entender que, embora sejam
textos comprometidos, nem por isso são falsos. A tarefa do teólogo e do exegeta
é tentar encontrar, por trás do discurso tematizado e teologizado que foi
colocado na boca de Jesus, senão as ipissima
verba Jesu, pelo menos o conteúdo essencial de seus ensinamentos.
C. O
Jesus histórico é acessível
Depois
das afirmações feitas por Bultmann em seus livros e palestras, o mundo
teológico vê surgir uma tremenda reação ao exagero de suas colocações. As
principais reações ao projeto de Bultmann podem ser associados ao movimento da
“Nova Hermenêutica”, que refaz os estudos do acercamento ao texto do evangelho
à luz do segundo Heidegger; à figura de Ernest Käsemann, um de seus mais
brilhantes alunos; e Joaquim Jeremias.
Por
falta de espaço, nos limitaremos à crítica exposta por Jeremias e à sua
convicção de que é possível, sim, chegar ao Jesus histórico. Devemos, no
entanto, nos precaver sobre algo importante: não pretendemos retornar à
perspectiva da Leben-Jesu-Forschung,
contudo, estamos convictos de que certamente podemos chegar a Jesus de Nazaré,
como aquele que foi chamado de Senhor e Cristo, a partir de seus atos e ditos.
Jeremias
tem sido colocado entre os exegetas protestantes mais conservadores, ao lado de
Stauffer e Künneth. Para ele Bultmann o único resultado concreto do trabalho de
Bultmann foi a destruição e não a demitização. Bultmann foi alguém que minou a
fé cristã. Todas as suas críticas ao exagero bultmaniano podem ser lidas em um
brilhande opúsculo lançado em 1960 intitulado: Das Problem des historischen Jesus.
Neste
texto Jeremias reconhece que Bultmann foi feliz em chamar a atenção à
importância do Kerígma e à gratuidade da salvação. contudo, não poupa críticas
por haver “esvaziado o cristianismo de seu fato principal que é a Encarnação e
haver substituído Jesus por Paulo”.[9]
Como
vemos, para Joaquim Jeremias, o principal evento do cristianismo é a
Encarnação. Para ele, é justamente este evento que deve possibilitar a volta a
um Jesus histórico. Segundo Jeremias:
“A Encarnação implica que a história de Jesus se presta ao exame histórico e à crítica histórica; bem mais, ela o exige. Precisamos saber quem era o Jesus da história e qual foi sua pregação. Não temos o direito de afastar o escândalo da encarnação...a Encarnação é o ato pelo qual Deus se entrega, e isso não podemos deixar de aceitar”.[10]
Segundo
Jeremias, nós não apenas podemos, mas devemos buscar o Jesus histórico. Devemos
porque a existência das fontes escritas nos clamam para buscar aquele que serviu
de fundamento para o Kerígma. E não apenas isto, o próprio Kerígma nos impele
de volta à sua origem, exigindo saber mais sobre os fatos que o fizeram nascer.
Sim, concorda Jeremias, todo Kerígma é interpretação, mas interpretação de um
fato histórico anterior que o funda.
Aquilo
que as fontes e o Kerígma nos obriga fazer, nós efetivamente podemos fazer, uma
vez que estamos hoje melhor preparados e mais protegidos contra o perigo de
projetar nossa própria subjetividade na reconstrução da imagem de Jesus – erro
cometido pelos biógrafos do liberalismo.
Para
Jeremias há cinco fatores que nos permitem, hoje, Ter uma perspectiva mais
otimista sobre a aproximação ao Jesus histórico. Em primeiro lugar ele destaca
que a crítica literária está muito mais aperfeiçoada. Para ele, com seus novos
métodos mais precisos e refinados, o pesquisador pode ter acesso à tradição
evangélica atingindo até sua situação pré-literária.
Em
segundo lugar, Jeremias aposta na Formgeschiste.
Segundo nosso teólogo, a pesquisa sobre a história da forma hoje, nos
permite ir muito mais longe do que a crítica da forma. Para ele, a Formgerschiste nos permite chegar por baixo do estrato
helenístico existente no texto e atingir a tradição palestinense mais antiga
que está por traz e subjas ao texto que temos.
Mas ele
não para por ai. Para Jeremias, os resultados recentes das pesquisas históricas
e arqueológicas na palestina nos coloca diante de uma gama de informações tão
amplas e vastas como jamais foi visto. Hoje, temos um conhecimento muito mais
profundo sobre a palestina nos temos de Jesus. Recentes descobertas sobre a
literatura rabínica daquele tempo, da apocalíptica judaica e do essenismo de
Qumrân, nos faz acreditar que
“Tudo isso permite não apenas integrar Jesus na sua trerra e no seu tempo, mas ainda avaliar a novidade da piedade de Jesus no seu flagrante contraste com a piedade e aspirações dos contemporâneos”.[11]
Em
quarto lugar, Jeremias destaca que o conhecimento a que chegamos hoje sobre a
língua de Jesus (aramaico-galileu), nos faz crer que muitas variantes gregas,
nada mais são, do que variantes de traduções da mesma palavra aramaica. Um
significativo exemplo disso nos é colocado pelo bispo D. Terra quando ele
assevera que:
“Por exemplo, se a expressão
‘Abba’, usada por Jesus na oração, ou o ‘Amém’ na introdução solene de algumas
afirmações forem demonstrado ser uma novidade absolutamente original e
exclusiva de Jesus, então temos ai exemplos da ‘impssissima verba’ de Jesus,
mas também um contato direto com o pensamento de Jesus a respeito de si mesmo e
de sua missão”.[12]
Finalmente, Jeremias compreende que, as recentes
descobertas sobre a índole escatológica do pensamento de Jesus, são importantes
e eficazes para corrigir a tendência moderna de “psicologizar” a imagem de
Jesus. Segundo Jeremias, a pregação de Jesus estava “embebida” de sua convicção
acerca da “crise” iminente do juízo de Deus. Ao anunciar de forma tão marcante
a inauguração do Reino de Deus, Jesus ao mesmo tempo que se contrapõe à
religião oficial da época, reivindica para si uma autoridade singular e uma fé
absoluta.
Aqui
está mais uma novidade em Jesus. Só ele anuncia um Reino para os pobres e
miseráveis, fazendo-os participar agora da salvação. Jesus é o único que busca
os pecadores e não os “justos” para o seu Reino.
Diante
das reivindicações que Jesus faz, por exemplo ao se digir a Deus chamando-o de
“Abba”, o historiador é forçado ver nestes textos, não uma afirmação marginal
mas absolutamente central ao estudo do Novo Testamento. Para D. terra, ainda
resta uma questão para que jeremias Responda: qual a relação entre o evangelho
de Jesus e a pregação da Igreja?
Segundo Jeremias, há duas verdades das quais não
podemos nos afastar: primeiro que o evangelho de Jesus e a pregação da Igreja
não podem ser separados, pois se assim o fizesse-mos, criaríamos ou bem uma
história sem vida ou bem uma idéia surrealista. Em segundo lugar, contudo,
também não podemos esquecer que o evangelho de Jesus e a pregação da Igreja não
são a mesma coisa. A vida de Jesus é a Palavra de Deus através da qual Deus
interpela a humanidade; e a pregação da Igreja é o testemunho prestado a esta
revelação.
A crítica que Käsemann faz a Jeremias é contundente
e tem a ver com esta distinção. Ele critica Jeremias por reduzir a revelação à
pessoa de Jesus de Nazaré, à sua imagem e à sua mensagem. Segundo Käsemann o
que Jeremis faz não é muito diferente do que Bultmann fez. Enquanto este
reduziu a revelação apenas ao Kerígma da Igreja primitiva, aquele a identifica
apenas com o Jesus da história. Ou seja, o testemunho cede o lugar à história.
De tudo
o que foi colocado acima Latourelle, com coragem, arremata dizendo
categoricamente que “A distância entre o Jesus histórico e o Cristo da fé é
artificial e representa um falso problema”,[13]
uma vez que, fazendo dos dois um só nome, Jesus Cristo, a Igreja ressalta que
estamos tratando de uma mesma e só pessoa
D. O
Cristo da fé nos desafia
Finalmente, não podemos desconsiderar todo caráter
existencial que existe no Kerígma da Igreja. O testemunho da comunidade de fé nos
mostra um Cristo que nos chama a um compromisso e a uma obediência e
dependência última. Ele é aquele que nos desafia a, com ele, tomar nossa cruz e
seguir adiante no projeto de implantação do Reino de Deus, onde os pobres e
excluídos possuem lugar especial.
Sua cruz nos convida também a colocar nossa vida em
risco diante de uma sociedade utilitarista que explora os pobres e diante de
expressões religiosas que vivem à sombra do poder. Sua cruz é um convite à
nossa desestabilização e desencastelamento, ela nos coloca sempre sob o signo
do “risco”, mas, em consequência disso, sob o signo da vida autêntica.
Sua ressurreição é uma afirmação de que o “novo” já
surgiu, já irrompeu da morte, e que ela não foi forte o suficiente para segurar
o fluxo de vida que Jesus nos dá. Sua ressurreição nos faz ver o futuro com
esperança, com porfia, com uma profunda certeza de que, a qualquer momento, o
reino será instaurado e, enfim, a vitória final virá.
Encerro este texto com a letra de uma música
especial escrita por Homero Perera e Federico Pagura:
Porque ele entrou no mundo e em nossa história;
Porque quebrou o silêncio e a agonia;
Porque mostrou na terra sua glória;
Porque foi luz em nossa noite fria;
Porque nasceu em pobre estrebaria;
Porque viveu semeando amor e vida;
Porque partiu os corações mais duros
E levantou aos tristes e abatidos.
Por isso é que hoje temos esperança,
Por isso é que lutamos destemidos,
Por isso olhamos hoje com confiança
Para o porvir dos povos oprimidos 2X
Porque atacou corruptos mercadores
E denunciou maldade e hipocrisia,
Porque exaltou crianças e mulheres,
E condenou aos que de orgulho ardiam.
Porque levou a cruz de nossas penas
E saboreou o fel de nossos males;
Porque aceitou sofrer a nossa culpa
E assim morrer por todos os humanos.
Porque uma aurora viu sua vitória
Sobre as mentiras, sobre a morte e o medo.
Já nada pode interromper sua história,
Nem a chegada de seu Reino eterno.
4. Perigos da dicotomia
A história tem demonstrado que durante os últimos
dois milênios a Igreja tem visto um movimento pendular que ora aponta para o
Jesus histórico, ora destaca o Cristo da fé. Quando a Igreja de põe a trabalhar
apenas um dos aspecto levantados acima, infelizmente sentimos que ela deixa de
lado muitas dimensões importantes que a outra abordagem nos quer proporcionar.
Examinaremos agora o que ocorre com a Igreja que privilegia apenas um dos
aspectos da Cristologia.
A.
Privilegiar o Jesus histórico
Ao privilegiar apenas a abordagem do Jesus
histórico, a Igreja corre, pelo menos, os seguintes perigos: em primeiro lugar
ela pode cair na tentação de transformar Jesus em um revolucionário ou um sábio
qualquer, empobrecendo assim, a imagem correta de Jesus. Em segundo lugar, ao
valorizar apenas o Jesus histórico, deslocamos o critério da fé para a esfera
da praxis e com isso desconsideramos todo o testemunho da tradição da Igreja.
Finalmente a redução da cristologia apenas ao aspecto histórico e imanente,
tende a esvaziar o sentido do “encontro” com o ressuscitado e suas
conseqüências existenciais. Teologicamente, criamos uma dimensão neo-ariana,
que atenta para sua dimensão humana e descrê de sua divindade.
B.
Privilegiar o Cristo da fé
Por outro lado, quando nos voltamos apenas para a dimensão transcendente do Cristo glorificado, podemos levar a Igreja a cometer erros não menos perigosos. Citaremos apenas alguns deles.
Em primeiro lugar a diferença é sentida na
celebração litúrgica. Toda nossa celebração tende a ficar desvinculada da
realidade em que vivemos. Nossos cultos apontam para cima, falam de realidades
de cima e nos deixam completamente alienados do que ocorre “na base do
monte”. Esta visão também tende a
desconsiderar a diaconia e o serviço ao próximo, criando uma comunidade que não
considera as dores dos que nos rodeiam. Finalmente este tipo de abordagem tende
a aprisionar a congregação em um tipo de “triângulo da felicidade” no qual o
“bom cristão” é aquele que circula apenas entre a sua casa, sua igreja e seu
trabalho (ou escola). Todos os demais aspectos da vida cotidiana, inclusive os
legítimos, são desconsiderados, uma vez que nosso “modelo” não os vivenciou e,
portanto, não os legitimou. Optamos assim por uma vida sem prazer, sem alegria
e sem cultura. Teologicamente acabamos por recriar uma cristologia gnóstica ou
docética.
[1]
SESBOÜÍ, BERNARD Pedagogia do cristo:
Elementos de Cristologia Fundamental, p. 97
[2]
A. VON HARNACK em L’essenza del
cristianesimo, p. 157, citado por Rosino Gibellini em A
Teologia do Século
XX, p. 14
[3]
R. GIBELLINI A Teologia do Século XX,
p. 35
[4]
GRECH, PROSPER Problema Cristológico e a
Hermenêutica, artigo no texto Problemas
e Perspectivas em
Teologia Fundamental, p. 132
[5]
GRECH, PROSPER Problema Cristológico e a
Hermenêutica, artigo no texto Problemas
e Perspectivas em
Teologia Fundamental, p. 132
[6]
GRECH, PROSPER Problema Cristológico e a
Hermenêutica, artigo no texto Problemas
e Perspectivas em
Teologia Fundamental, p. 132
[7]
LEÖN, D.M. em Dicionário Teológico: O Deus Cristão, Verbete “Jesus
Cristo”, p. 486
[8]
LATOURELLE, R. Jesus Existiu?, p. 8
[9]
LATOURELLE, R Jesus Existiu?, p. 40
[10]
Citado por René Latourelle em
Jesus Existiu?, p. 41
[11]
TERRA, J.E.M. Jesus, p. 45
[12]
TERRA, J.E.M. Jesus, p. 45
[13]
LATOURELLE, R. No verbete “Jesus da história e Cristo da fé”, no Dicionário: Teologia Fundamental, p. 495