quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Tópicos Introdutórios à Teologia Sistemática IV



A CRISTOLOGIA

A partir de hoje, e nos próximos três encontros, estudaremos alguns temas de Cristologia e sobre seu lugar na Teologia Sistemática. Nosso pressuposto básico, como já vimos, é o de que Deus não permitiu, em sua graça, que permanecêssemos distante de si mas graciosamente se revelou através da pessoa de Jesus Cristo. Cristo é, desta forma, a revelação privilegiada de Deus; a maneira através da qual Deus pode ser um Deus conosco, ou um Deus para nós.

Nosso breve caminho sobre a cristologia será trilhado em três momentos. Neste primeiro momento nos dedicaremos às questões relativas ao grande debate existente entre o Jesus histórico e ao Cristo da fé. Nas próximas aulas nos deteremos mais sobre sua pessoa e obra examinando o que diz a Escritura e o dogma da Igreja.

I.                   A problemática da Cristologia contemporânea

1.      O Início dos Problemas


Como introdução é importante destacar que boa parte do século XIX foi gasto em um caloroso debate sobre a pessoa de Jesus. Houve tanta discussão sobre o tema que muitos chamaram este período de “segundo período de formulação cristológica”.

Todo este debate ocorreu em função da importância que a história acabou por assumir neste período. Assim como acontecera com as ciências da natureza, a história acabara de se constituir como uma ciência em um clima de grande otimismo. Neste momento, diz Bernard Sesboüé, ela (a história) ainda não possuía “consciência da complexidade dos problemas colocados pela distância histórica entre o objeto estudado e o sujeito que o estuda”.[1] Sua abordagem também acreditava ser possível também um conhecimento positivo e pleno de todos os fatos, acreditando poder chegar à verdade em toda a sua coerência.

Sem dúvida seria importante nos aprofundar sobre este debate no século XIX, no entanto, por absoluta falta de espaço, e por acreditar que existe muito material revelador em português, nosso tratamento deste período será apenas pontual. Muitas contribuições para o debate cristológico ocorreu no século XIX, e creio que é importante mencionar pelo menos os nomes de Hermann Reimarus (1694-1768), reconhecido como o fundador do movimento biográfico; Heinrich Paulus (1761-1851), que se caracterizou por tentar explicar cada milagre com uma resposta convincente; David Friedrich Strauss (1808-1874), para quem a história de Jesus nos evangelhos deve muito à mitologia; e Ernest Renan (1823-1892), que apresentou a mais popular biografia de Jesus, escrita a partir de uma perspectiva romântica.

A distinção entre o “Jesus da história” e o “Cristo da fé”, no entanto, apareceu pela primeira vez em um livro de M. Kähler chamado Der sogenannte historische Jesus und der geschichtliche, biblich Christus, publicado em 1892. Deve-se, porém, a figura de Adolf Harnack, um dos maiores historiadores do dogma, a popularização da dicotomia existente entre a “pessoa humana de Jesus”, que nasceu, cresceu e morreu como todos os demais mortais e o “Cristo da fé”, que seria o resultado da reflexão, da elaboração teológica, e do desenvolvimento do dogma da Igreja, a partir de categorias e pressupostos gregos. Este Cristo da fé era o resultado da pregação da Igreja.

Segundo Harnack, em seu livro a Essência do cristianismo, “o evangelho, como Jesus o praticou, não anuncia o Filho, mas somente o Pai”.[2] Toda tentativa posterior de apresentação de um “Cristo” com status já estabelecido na Igreja, segundo ele, é influência helênica e deve ser rejeitada. 

Me parece que o que pode ser encontrado na base desta crítica, é a imagem de um mundo fechado para o transcendente, ou seja, uma postura racionalista que elimina o “milagre” a priori como sendo algo próprio de uma mente “inferior”.

Desta forma, o pressuposto racionalista, associado com o método histórico-crítico e com o desejo de harmonizar a fé cristã com a consciência cultural da época, acabou por separar o personagem histórico (Jesus) do cerne da pregação apostólica (Cristo).

2.      As Possibilidades do encontro com Jesus


Mais tarde, através dos trabalhos de Rudolf Bultmann (1884-1976), esta idéia recebeu mais apoio quando este exegeta procura demonstrar que a mensagem apresentada pelo Novo Testamento é “expressa, coerentemente com a antiga imagem mitológica: encarnação de um ser preexistente, morte expiatória, ressurreição, descida aos infernos, ascensão ao céu, retorno no final dos tempos”.[3]

O que fazer diante deste conteúdo mítico no Novo Testamento? A resposta dada por Bultmann é “demitizar”. Mas o que é isto? Ele responde: criticar a imagem do mundo expressa no mito e, ao mesmo tempo, buscar sua verdadeira intenção. Este era o problema com a teologia liberal, ela procurava demitizar destruindo o mito e não interpretá-lo existencialmente.

Para Bultmann, o Cristo da fé era resultado de uma produção mítica que deveria sofrer este processo de demitização. Quanto ao Jesus histórico, ele era tanto irrelevante quanto inacessível.

Diante a afirmação de Bultmann de que o Jesus histórico é irrelevante para o cristo da fé, Kaesemann, um de seus alunos, passa a assumir uma postura na qual procura evitar simultaneamente a posição de Bultmann, o racionalismo e o sobrenaturalismo, identificado por ele com um sacrificium intellectus.

Para Kaesemann o Jesus histórico era importante para a igreja primitiva, uma vez que esta demonstrou que pretendia evitar que o mito tomasse o lugar da história ou que um ser celeste e gnóstico assumisse o lugar do homem de Nazaré.

Ele compreende, com Bultmann, que a cruz e a ressurreição assume um lugar central na fé da Igreja. Mas o Kerigma, ou a pregação da Igreja primitiva, só tem sentido porque aponta para um fundamento histórico anterior à cruz. Portanto, de alguma forma, podemos “acessar” o Jesus histórico. Ele não está de todo perdido. Segundo Rosino Gibellini:

“Kaesemann afirma que o Jesus histórico, ainda que não tenha jamais dito explicitamente ser o Messias, falou e agiu, contudo, com tal autoridade que todos perceberam nele um ser superior. Somente na proclamação da Igreja pós-pascal é que o implícito se torna explícito”.[4]

A mesma crítica é feita pelo teólogo francês O. Cullmann, para quem, Bultmann pretendeu demitizar justamente aquilo que não é permitido demitizar, ou seja, os fatos da história.

Outra forte reação foi a de J. Jeremias, para quem Bultmann ameaça esvaziar a mensagem evangélica daquele que é seu conteúdo central: a encarnação. 

Segundo este teólogo, a fixação de Bultmann por desconsiderar os textos evangélicos como dignos de fé é tão forte que ele ameaça substituir Jesus por Paulo, na exposição sobre o cristianismo. Para Jeremias, Bultmann não consegue entender que Paulo sem Jesus é incompreensível. O que é pior, no entanto, é que ao desconsiderar completamente o Jesus da história, Bultmann acaba por retornar ao docetismo. Nas palavras de Prosper: “separar o querigma da história significa cair nos excessos do docetismo ou do ebionitismo”.[5] O início de nossa fé não pode ser identifiada apenas no kerígma, mas no fato histórico da vida real de Jesus, ou seja, “o Jesus histórico está para o Cristo da fé assim como a chamada para a resposta”.[6] Ao afirmar a completa e radical diferença entre o Jesus histórico e o Cristo da fé, Bultmann peca, porque elimina a causa que produz o efeito.

3.      Considerações Relevantes


Diante do exposto acima, precisamos esclarecer alguns pontos que julgamos relevantes para o estudo da Cristologia bíblica e para uma aproximação adequada e relevante para o teólogo em nossos dias.

A.    A visão do Novo Testamento é mítica

Qualquer estudioso sério da história da ciência compreende sem maiores complicações que os documentos bíblicos foram todos escritos em um período pré-científicos e que, portanto, não se permitem estudar com os mesmos instrumentos conceituais com que lemos, por exemplo, o jornal de hoje. 

É verdade que nas Escrituras encontramos vários tipos de literatura, como por exemplo, a prosa, a poesia e também o mito. É claro que as pessoas daquela época possuíam uma idéia de mundo dividido em três pavimentos; é claro que eles atribuíam aos deuses ou aos espíritos qualquer manifestação que hoje julgamos natural, em função das informações de que dispomos; é óbvio que o desconhecimento dos vírus e dos micróbios, faziam com que eles associassem a doença à ação de espíritos malignos e que os feiticeiros possuíam também a atribuição de curar. Mas com certeza, eles possuíam também a noção do que era história e o respeito pelas ações de Deus dentro da história de seu povo. 

O problema com o racionalismo é que seus pressupostos anti-sobrenaturalistas de um mundo fechado acabam por colocar nas histórias sobre Jesus ou o título de fraude, ou o de mito. Ou como disse Domingo Muñoz León: “a pesquisa racionalista sobre os evangelhos é crítica apriorística e fechada ao mundo divino”.[7]

Creio firmemente ser possível a convivência pacífica de uma concepção de mundo aberto à ação de Deus e uma postura historico-crítica que respeite os diversos tipos de textos e que utilize a demitização como ferramenta hermenêutica relevante, respeitável e legítima.

B.     A mensagem da Igreja primitiva é comprometida

Tenho a impressão que uma leitura, mesmo não acurada, dos textos do Novo Testamento podem revelar muito claramente que seus autores não pretendiam escrever uma obra isenta de pressupostos ou prenoções. O Novo Testamento não pretende apresentar informações isentas e neutras sobre a pessoa de Jesus Cristo. Pelo contrário, quem escreve, escreve porque está, não apenas comprometido com a pessoa, mas também porque qualquer postura neutra é impossível. O próprio Bultmann já afirmou ser impossível a exegese livre de pressupostos.

Os evangelistas, ao escreverem seus textos, não pretendiam apresentar um trabalho jornalístico sobra a vida de Jesus. Os evangelhos não são biografias conforme entendemos modernamente. Eles são documentos comprometidos com uma pessoa e com um propósito teológico próprio e particular. Cada um deles pretende falar a um publico diferente e por isso “escolhem” os fatos que podem ser melhor trabalhados para atingir seu objetivo. Como nos lembra René Latourelle: “essa mensagem não é neutra, mas proclamada no contexto de um compromisso”.[8] O único Jesus que pode ser encontrado nos textos dos evangelhos, é o Jesus que é confessado e professado como Senhor.

Não queremos advogar a “neutralidade dos textos bíblicos”. Pelo contrário, queremos admitir que havia compromisso da Igreja primitiva com este Jesus, chamado Cristo. E sua pregação, além de comprometida é o testemunho de fé de uma comunidade que recebe Jesus de Nazaré como o Salvador, Senhor, Messias, Filho de Deus e em consequência disso, objeto de louvor e adoração. 

Mas, além disso, estes textos são também textos que nos convidam ao compromisso. Há, portanto neles, uma intenção apologética e evangelística. Há um convite ao compromisso.

Finalmente, precisamos entender que, embora sejam textos comprometidos, nem por isso são falsos. A tarefa do teólogo e do exegeta é tentar encontrar, por trás do discurso tematizado e teologizado que foi colocado na boca de Jesus, senão as ipissima verba Jesu, pelo menos o conteúdo essencial de seus ensinamentos.

C.    O Jesus histórico é acessível

Depois das afirmações feitas por Bultmann em seus livros e palestras, o mundo teológico vê surgir uma tremenda reação ao exagero de suas colocações. As principais reações ao projeto de Bultmann podem ser associados ao movimento da “Nova Hermenêutica”, que refaz os estudos do acercamento ao texto do evangelho à luz do segundo Heidegger; à figura de Ernest Käsemann, um de seus mais brilhantes alunos; e Joaquim Jeremias.

Por falta de espaço, nos limitaremos à crítica exposta por Jeremias e à sua convicção de que é possível, sim, chegar ao Jesus histórico. Devemos, no entanto, nos precaver sobre algo importante: não pretendemos retornar à perspectiva da Leben-Jesu-Forschung, contudo, estamos convictos de que certamente podemos chegar a Jesus de Nazaré, como aquele que foi chamado de Senhor e Cristo, a partir de seus atos e ditos.

Jeremias tem sido colocado entre os exegetas protestantes mais conservadores, ao lado de Stauffer e Künneth. Para ele Bultmann o único resultado concreto do trabalho de Bultmann foi a destruição e não a demitização. Bultmann foi alguém que minou a fé cristã. Todas as suas críticas ao exagero bultmaniano podem ser lidas em um brilhande opúsculo lançado em 1960 intitulado: Das Problem des historischen Jesus.

Neste texto Jeremias reconhece que Bultmann foi feliz em chamar a atenção à importância do Kerígma e à gratuidade da salvação. contudo, não poupa críticas por haver “esvaziado o cristianismo de seu fato principal que é a Encarnação e haver substituído Jesus por Paulo”.[9]

Como vemos, para Joaquim Jeremias, o principal evento do cristianismo é a Encarnação. Para ele, é justamente este evento que deve possibilitar a volta a um Jesus histórico. Segundo Jeremias:

“A Encarnação implica que a história de Jesus se presta ao exame histórico e à crítica histórica; bem mais, ela o exige. Precisamos saber quem era o Jesus da história e qual foi sua pregação. Não temos o direito de afastar o escândalo da encarnação...a Encarnação é o ato pelo qual Deus se entrega, e isso não podemos deixar de aceitar”.[10]


Segundo Jeremias, nós não apenas podemos, mas devemos buscar o Jesus histórico. Devemos porque a existência das fontes escritas nos clamam para buscar aquele que serviu de fundamento para o Kerígma. E não apenas isto, o próprio Kerígma nos impele de volta à sua origem, exigindo saber mais sobre os fatos que o fizeram nascer. Sim, concorda Jeremias, todo Kerígma é interpretação, mas interpretação de um fato histórico anterior que o funda.

Aquilo que as fontes e o Kerígma nos obriga fazer, nós efetivamente podemos fazer, uma vez que estamos hoje melhor preparados e mais protegidos contra o perigo de projetar nossa própria subjetividade na reconstrução da imagem de Jesus – erro cometido pelos biógrafos do liberalismo.

Para Jeremias há cinco fatores que nos permitem, hoje, Ter uma perspectiva mais otimista sobre a aproximação ao Jesus histórico. Em primeiro lugar ele destaca que a crítica literária está muito mais aperfeiçoada. Para ele, com seus novos métodos mais precisos e refinados, o pesquisador pode ter acesso à tradição evangélica atingindo até sua situação pré-literária.

Em segundo lugar, Jeremias aposta na Formgeschiste. Segundo nosso teólogo, a pesquisa sobre a história da forma hoje, nos permite ir muito mais longe do que a crítica da forma. Para ele, a Formgerschiste  nos permite chegar por baixo do estrato helenístico existente no texto e atingir a tradição palestinense mais antiga que está por traz e subjas ao texto que temos.

Mas ele não para por ai. Para Jeremias, os resultados recentes das pesquisas históricas e arqueológicas na palestina nos coloca diante de uma gama de informações tão amplas e vastas como jamais foi visto. Hoje, temos um conhecimento muito mais profundo sobre a palestina nos temos de Jesus. Recentes descobertas sobre a literatura rabínica daquele tempo, da apocalíptica judaica e do essenismo de Qumrân, nos faz acreditar que

“Tudo isso permite não apenas integrar Jesus na sua trerra e no seu tempo, mas ainda avaliar a novidade da piedade de Jesus no seu flagrante contraste com a piedade e aspirações dos contemporâneos”.[11]


Em quarto lugar, Jeremias destaca que o conhecimento a que chegamos hoje sobre a língua de Jesus (aramaico-galileu), nos faz crer que muitas variantes gregas, nada mais são, do que variantes de traduções da mesma palavra aramaica. Um significativo exemplo disso nos é colocado pelo bispo D. Terra quando ele assevera que:

“Por exemplo, se a expressão ‘Abba’, usada por Jesus na oração, ou o ‘Amém’ na introdução solene de algumas afirmações forem demonstrado ser uma novidade absolutamente original e exclusiva de Jesus, então temos ai exemplos da ‘impssissima verba’ de Jesus, mas também um contato direto com o pensamento de Jesus a respeito de si mesmo e de sua missão”.[12]

Finalmente, Jeremias compreende que, as recentes descobertas sobre a índole escatológica do pensamento de Jesus, são importantes e eficazes para corrigir a tendência moderna de “psicologizar” a imagem de Jesus. Segundo Jeremias, a pregação de Jesus estava “embebida” de sua convicção acerca da “crise” iminente do juízo de Deus. Ao anunciar de forma tão marcante a inauguração do Reino de Deus, Jesus ao mesmo tempo que se contrapõe à religião oficial da época, reivindica para si uma autoridade singular e uma fé absoluta.

Aqui está mais uma novidade em Jesus. Só ele anuncia um Reino para os pobres e miseráveis, fazendo-os participar agora da salvação. Jesus é o único que busca os pecadores e não os “justos” para o seu Reino.

Diante das reivindicações que Jesus faz, por exemplo ao se digir a Deus chamando-o de “Abba”, o historiador é forçado ver nestes textos, não uma afirmação marginal mas absolutamente central ao estudo do Novo Testamento. Para D. terra, ainda resta uma questão para que jeremias Responda: qual a relação entre o evangelho de Jesus e a pregação da Igreja?

Segundo Jeremias, há duas verdades das quais não podemos nos afastar: primeiro que o evangelho de Jesus e a pregação da Igreja não podem ser separados, pois se assim o fizesse-mos, criaríamos ou bem uma história sem vida ou bem uma idéia surrealista. Em segundo lugar, contudo, também não podemos esquecer que o evangelho de Jesus e a pregação da Igreja não são a mesma coisa. A vida de Jesus é a Palavra de Deus através da qual Deus interpela a humanidade; e a pregação da Igreja é o testemunho prestado a esta revelação.

A crítica que Käsemann faz a Jeremias é contundente e tem a ver com esta distinção. Ele critica Jeremias por reduzir a revelação à pessoa de Jesus de Nazaré, à sua imagem e à sua mensagem. Segundo Käsemann o que Jeremis faz não é muito diferente do que Bultmann fez. Enquanto este reduziu a revelação apenas ao Kerígma da Igreja primitiva, aquele a identifica apenas com o Jesus da história. Ou seja, o testemunho cede o lugar à história.

De tudo o que foi colocado acima Latourelle, com coragem, arremata dizendo categoricamente que “A distância entre o Jesus histórico e o Cristo da fé é artificial e representa um falso problema”,[13] uma vez que, fazendo dos dois um só nome, Jesus Cristo, a Igreja ressalta que estamos tratando de uma mesma e só pessoa

D.    O Cristo da fé nos desafia

Finalmente, não podemos desconsiderar todo caráter existencial que existe no Kerígma da Igreja. O testemunho da comunidade de fé nos mostra um Cristo que nos chama a um compromisso e a uma obediência e dependência última. Ele é aquele que nos desafia a, com ele, tomar nossa cruz e seguir adiante no projeto de implantação do Reino de Deus, onde os pobres e excluídos possuem lugar especial.

Sua cruz nos convida também a colocar nossa vida em risco diante de uma sociedade utilitarista que explora os pobres e diante de expressões religiosas que vivem à sombra do poder. Sua cruz é um convite à nossa desestabilização e desencastelamento, ela nos coloca sempre sob o signo do “risco”, mas, em consequência disso, sob o signo da vida autêntica.

Sua ressurreição é uma afirmação de que o “novo” já surgiu, já irrompeu da morte, e que ela não foi forte o suficiente para segurar o fluxo de vida que Jesus nos dá. Sua ressurreição nos faz ver o futuro com esperança, com porfia, com uma profunda certeza de que, a qualquer momento, o reino será instaurado e, enfim, a vitória final virá.

Encerro este texto com a letra de uma música especial escrita por Homero Perera e Federico Pagura:

Porque ele entrou no mundo e em nossa história;
Porque quebrou o silêncio e a agonia;
Porque mostrou na terra sua glória;
Porque foi luz em nossa noite fria;
Porque nasceu em pobre estrebaria;
Porque viveu semeando amor e vida;
Porque partiu os corações mais duros
E levantou aos tristes e abatidos.

Por isso é que hoje temos esperança,
Por isso é que lutamos destemidos,
Por isso olhamos hoje com confiança
Para o porvir dos povos oprimidos          2X

Porque atacou corruptos mercadores
E denunciou maldade e hipocrisia,
Porque exaltou crianças e mulheres,
E condenou aos que de orgulho ardiam.
Porque levou a cruz de nossas penas
E saboreou o fel de nossos males;
Porque aceitou sofrer a nossa culpa
E assim morrer por todos os humanos.


Porque uma aurora viu sua vitória
Sobre as mentiras, sobre a morte e o medo.
Já nada pode interromper sua história,
Nem a chegada de seu Reino eterno.


4.      Perigos da dicotomia


A história tem demonstrado que durante os últimos dois milênios a Igreja tem visto um movimento pendular que ora aponta para o Jesus histórico, ora destaca o Cristo da fé. Quando a Igreja de põe a trabalhar apenas um dos aspecto levantados acima, infelizmente sentimos que ela deixa de lado muitas dimensões importantes que a outra abordagem nos quer proporcionar. Examinaremos agora o que ocorre com a Igreja que privilegia apenas um dos aspectos da Cristologia.

A.    Privilegiar o Jesus histórico

Ao privilegiar apenas a abordagem do Jesus histórico, a Igreja corre, pelo menos, os seguintes perigos: em primeiro lugar ela pode cair na tentação de transformar Jesus em um revolucionário ou um sábio qualquer, empobrecendo assim, a imagem correta de Jesus. Em segundo lugar, ao valorizar apenas o Jesus histórico, deslocamos o critério da fé para a esfera da praxis e com isso desconsideramos todo o testemunho da tradição da Igreja. Finalmente a redução da cristologia apenas ao aspecto histórico e imanente, tende a esvaziar o sentido do “encontro” com o ressuscitado e suas conseqüências existenciais. Teologicamente, criamos uma dimensão neo-ariana, que atenta para sua dimensão humana e descrê de sua divindade.

B.     Privilegiar o Cristo da fé
Por outro lado, quando nos voltamos apenas para a dimensão transcendente do Cristo glorificado, podemos levar a Igreja a cometer erros não menos perigosos. Citaremos apenas alguns deles.
Em primeiro lugar a diferença é sentida na celebração litúrgica. Toda nossa celebração tende a ficar desvinculada da realidade em que vivemos. Nossos cultos apontam para cima, falam de realidades de cima e nos deixam completamente alienados do que ocorre “na base do monte”.  Esta visão também tende a desconsiderar a diaconia e o serviço ao próximo, criando uma comunidade que não considera as dores dos que nos rodeiam. Finalmente este tipo de abordagem tende a aprisionar a congregação em um tipo de “triângulo da felicidade” no qual o “bom cristão” é aquele que circula apenas entre a sua casa, sua igreja e seu trabalho (ou escola). Todos os demais aspectos da vida cotidiana, inclusive os legítimos, são desconsiderados, uma vez que nosso “modelo” não os vivenciou e, portanto, não os legitimou. Optamos assim por uma vida sem prazer, sem alegria e sem cultura. Teologicamente acabamos por recriar uma cristologia gnóstica ou docética.



[1] SESBOÜÍ, BERNARD Pedagogia do cristo: Elementos de Cristologia Fundamental, p. 97
[2] A. VON HARNACK em L’essenza del cristianesimo, p. 157, citado por Rosino Gibellini em A Teologia do Século XX, p. 14
[3] R. GIBELLINI A Teologia do Século XX, p. 35
[4] GRECH, PROSPER Problema Cristológico e a Hermenêutica, artigo no texto Problemas e Perspectivas em Teologia Fundamental, p. 132
[5] GRECH, PROSPER Problema Cristológico e a Hermenêutica, artigo no texto Problemas e Perspectivas em Teologia Fundamental, p. 132
[6] GRECH, PROSPER Problema Cristológico e a Hermenêutica, artigo no texto Problemas e Perspectivas em Teologia Fundamental, p. 132
[7] LEÖN, D.M. em Dicionário Teológico: O Deus Cristão, Verbete “Jesus Cristo”, p. 486
[8] LATOURELLE, R. Jesus Existiu?, p. 8
[9] LATOURELLE, R Jesus Existiu?, p. 40
[10] Citado por René Latourelle em Jesus Existiu?, p. 41
[11] TERRA, J.E.M. Jesus, p. 45
[12] TERRA, J.E.M. Jesus, p. 45
[13] LATOURELLE, R. No verbete “Jesus da história e Cristo da fé”, no Dicionário: Teologia Fundamental, p. 495

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