Prof. Rev.. Jorge Aquino (Movimento Anglicano no Brasil)
III.
A Trindade
Só pode
falar apropriadamente sobre a Trindade aquele que conhece as dificuldades
inerentes de se falar sobre Deus, uma vez que toda a nossa dificuldade de falar
da Trindade advém de nossa “dificuldade de falar de Deus”.[1]
Uma via
de acesso privilegiada à realidade da Trindade tem sido a do culto. Todas as
nossas celebrações costumam ter início com a invocação da Trindade. Boa parte
das bênçãos de encerramento também lembram o Deus trino, para não falar das
orações, dos cânticos, das doxologias e recitação dos salmos. A Trindade, de
fato está presente em nosso momento cúltico. Modernamente mais uma forma de se
lembrar desta realidade divina tem sido o movimento de descobrimento dos
ícones, que tanta cor e vida tem trazido à contemplação entre os cristãos ao
redor do mundo.
Discordamos
da opinião de Karl Rahner, para quem, se o dogma trinitário tivesse que ser
eliminado como falso, a maior parte da literatura religiosa poderia permanecer
quase inalterada.[2]
Entendemos que uma séria reflexão sobre a Trindade não apenas nos manterá
dentro de uma sólida tradição cristã, mas poderá servir de base para toda uma
nova compreensão de nossa espiritualidade e de nosso envolvimento social.
Tentaremos, portanto, com este capítulo, refletir um pouco mais sobre esta
realidade que a todos incomoda, porque permanece inescrutável em seu mistério.
1.
A Fundamentação Bíblica
Antes de
iniciar qualquer discussão sobre a doutrina da Trindade é de suma importância
dar uma olhada sobre o que diz as Escrituras a respeito. São elas que
testificam deste Deus, portanto elas não nos deixarão sem pistas importantes.
Ao nos aproximar do texto
sagrado, no entanto, temos de ter em mente uma verdade básica que é muitas
vezes esquecida por aqueles que procuram nas Escrituras as respostas para suas
dúvidas. Esta verdade básica afirma que a Bíblia é o registro inspirado da
revelação gradativa e progressivamente de Deus.
O que
queremos afirmar com isso? Queremos, com esta afirmação básica, relembrar que
as Escrituras não caíram do céu pronta, acabada e encadernada, conforme se
encontra em nossa estante. Ela passou por um longo e difícil processo de
transmissão oral e escrita, foi alvo de várias recensões e edições em sua
história, a acabou por ter seu texto final e também seu cânon sendo definido
nos primeiros séculos depois de Cristo.
Ela foi
o resultado do trabalhos de inúmeras pessoas em um espaço de tempo enorme, sem
falar das diferenças sociais, culturais e linguísticas de seus escritores. Com
certeza podemos dizer que ela só existe hoje, em função de um ato miraculoso de
Deus em preserva-la para a edificação de seu povo.
Por
causa disto, compreendemos muito claramente que as verdades de que ela nos
fala, não foram todas reveladas ao mesmo tempo e da mesma forma. Muitos séculos
se passaram entre o chamado de Deus a Abraão e sua revelação mais plena em
Jesus Cristo. Muita diferença há entre os conceitos mosaicos referentes à lei e
a forma graciosa de Deus nos tratar em Cristo. Esta revelação de Deus,
portanto, levou tempo e não foi dada toda de uma vez. Foi gradativa e
progressiva. No Novo Testamento, cremos, encontramos de forma muito mais
acabada e plena as doutrinas essenciais à nossa vida de cristãos.
Muitos
escritores sábios e piedosos vão até os textos do Primeiro Testamento cheios de
convicção de poderem encontrar lá “provas” de que esta doutrina já era revelada
naquele tempo. Alguns tentam ver resquícios desta verdade nos “textos plurais”,
aqueles onde Deus fala na primeira pessoa do plural; outros vão tentar
encontrar evidências da trindade na tríplice repetição do adjetivo “Santo”,
entendendo que a Bíblia já se referia a uma trindade de pessoas divinas que
seriam vistas como “santas”. Todo este trabalho, no entanto, se revela como
inócuo, uma vez que seria impossível encontrar, dentro da estrutura mental
monoteísta dos judeus, algum espaço para a existência de três pessoas divinas.
Este raciocínio é absurdamente anacrônico. É por isso que o Dr. Francisco Catão
se refere a estas “piedosas interpretações” que estão a muitas gerações no seio
da Igreja, como “verdadeira violência ao texto”.[3]
Há quase uma completa concordância entre os exegetas e teólogos hoje acerca do
fato de que a "Bíblia hebraica não contém a doutrina da Trindade" e
que "o Novo Testamento não contém a doutrina explícita da Trindade".[4]
O Novo
Testamento revela, não de forma plena mas de forma significativa, algumas
pistas extremamente importantes sobre o tema da Trindade. Em primeiro lugar,
nos parece razoavelmente claro, que este tema não surgiria alheio à discussão
cristológica. É num ambiente de reflexão e de adoração à figura de Jesus
Cristo, que surge a oportunidade de se refletir sobre a essência deste Deus.
As
primeiras citações significativas sobre a realidade trina de Deus podem ser
vista nas referências ao batismo de Jesus, onde se diz que o Pai fala dos céus,
o Espírito desce em forma de pomba e o Filho é apresentado ao mundo como o
“Filho amado” a quem todos devemos ouvir. (Mt 3:16,17; Mc 1:9-11; Lc 3:21-22).
Outro
texto que servirá de base para a reflexão posterior da Igreja será aquele em
que Jesus comissiona sua Igreja a ir por todo o mundo pregando o evangelho.
Aqui se diz que todos os que receberem a fé deverão ser batizados “em nome do
Pai, do Filho e do Espírito Santo”. (Mt 28:19).
Há,
ainda, os textos paulinos clássicos, dentre os quais destacamos aquele em que
Paulo fala das divisões dos dons, ministérios e ações, colocando-as sob a
direção do mesmo Espírito, Senhor e Deus (I Co 12:4-6); há também a bênçãos
trinitárias, onde Paulo invoca a graça de Jesus, o amor de Deus e a comunhão do
Espírito Santo (II Co 13:13).
Desde o
Primeiro Testamento que a ênfase no monoteísmo era uma doutrina clara (Dt
6:4,5; Is 44:6-45:25). O Novo Testamento reafirma a mesma ênfase (Mc 12:29, 30;
I Co 8:4; Ef 4:6; I Tm 2:5), mas, algumas passagens deixa bem clara que a
pessoa de Cristo assume uma posição privilegiada, sendo identificado com o Pai
e até recebendo adoração. O prólogo do evangelho de João é muito claro ao
identificar o “Verbo” com “Deus”, e ao afirmar muito claramente que este
“verbo” se encarnou e habitou entre nós (Jo 1:1, 14). Apesar de todas estas pistas,
a palavra “Trindade” não aparece em nenhum texto do Novo Testamento, e é só com
Tertuliano que ela surgirá com a idéia que temos hoje.
2.
A Experiência da História
O estudo
da história da Igreja nos fará ver que os principais Pais da Igreja primitiva conheciam
algum tipo de Trindade na Divindade. Mas não devemos esquecer que nossa idéia
de Trindade, tão cara à tradição cristã, nos foi legada por meio de uma relação
entre o monoteísmo judaico, modificado pelo cristianismo, e a tradição
filosófica helênica, que segundo Catão, “procurava definir o que tinha de
próprio cada realidade”.[5]
Foi
justamente ai, no contexto da expansão da Igreja pelo mundo helenizado, que ela
se viu dentro de uma relação inevitável mas necessária de diálogo e
contaminação. Ao se ver forçada a expressar sua fé de forma compreensível aos
gregos ela permitiu que conceitos metafísicos que se concentravam na ontologia
tomassem o lugar da forma concreta do discurso bíblico. Ao falar das diferenças
entre o pensamento grego e o judaico, Lohse nos diz que “o pensamento grego
difere do bíblico sobretudo pelo fato de que, para o último, a verdade de Deus
se revelou na história, ao passo que, para os gregos, ela se baseia no ser
metafísico”.[6]
Quando a
Igreja aplicou esta nova forma de pensamento à sua concepção de Deus, o Pai, o
Filho e o Espírito Santo, poderiam muito bem serem interpretados como
“autonomias hipostáticas metafísicas”. Há aqui uma nítida mudança no discurso
da Igreja. Antes toda a alusão era feita à História: "não podemos parar de
falar sobre o que temos visto e ouvido", "ele foi visto por muitas
testemunhas", etc. há inúmeras referências no Novo testamento que atestam
a importância do dado histórico e testemuhal para a formação da teologia cristã
primitiva. O contato com a cultura helenista, contudo, operou uma enorme
mudança na linguagem. Uma mudança necessária, para quem desejava expandir a fé
atingindo também os gentios, mas uma mudança que marcou uma guinada na forma de
se fazer teologia.
Bavinck
faz referência a este momento na história da Igreja em que ela passou a adotar
uma nova linguagem, distinta da usada nas Escrituras, para fazer teologia. Para
ele isto deveria ser compreendido como algo natural uma vez que "as
Sagradas Escrituras não foram dadas por Deus à Igreja para serem
desconsideradamente repetidas, mas para serem entendidas em toda a sua
plenitude e riqueza".[7]
Além do mais, raciocina Bavinck, a história vem demostrando que eles são
importantes para preservar a verdade da Escrituras contra os que preferem
seguir os erros humanos.
O
principal responsável pela criação de uma linguagem trinitária ortodoxa dentro
dos padrões helenísticos, foi o jurista e teólogo leigo Tertuliano (160-220),
responsável também por inúmeras outras palavras utilizadas até hoje dentro da
teologia. Pois bem, foi Tertuliano o responsável, não apenas pela criação da
palavra “Trindade”, mas também pela tentativa de definir a realidade desta
Trindade com a expressão “una substantia,
tres personae”, ou seja, uma substância em três pessoas. É claro que bem
antes outros teólogos faziam experiência com estas palavras, mas foi Tertuliano
quem resumiu e condensou aquela que será a fé da Igreja até hoje. A tese
fundamental que Tertuliano anunciava dizia: “Unitas
ex semetipsa derivans Trinitatem”, que
queria dizer: “a unidade faz por si mesmo derivar a trindade”. Leonardo Boff
nos diz o que Tertuliano queria dizer com esta expressão ao afirmar:
“Deus não é simplesmente um, mas
uno. Em outras palavras, Deus não é uma mônada encerrada sobre si mesma, mas uma
realidade em processo (dispensatio ou oeconomia) constituindo uma segunda e uma
terceira pessoa que fazem parte de sua substância e de sua própria ação. Estas
duas pessoas (indivíduos concretos) são distintas mas não são divididas
(distincti, non divisi), são diversas mas não são separadas (discreti, non
separati). Este processo é eterno pois o Pai sempre gera o Filho e o faz sair
dele (prolatio); o mesmo Pai pelo Filho origina também eternamente o Espírito
Santo. Existe uma ordem (dispensatio, oeconomia) neste processo de comunicação:
o Pai é a totalidade da substância divina; o Filho e o Espírito Santo são portiones totius, comunicações
individuais (pessoais) deste todo substancial”.[8]
Todos
estes nomes são desconhecidos da Escritura. Isto ocorre porque ela não estava
preocupada em fazer uma espécie de metafísica de Deus. Uma vez que a linguagem
bíblica é "econômica", ou seja "centrada na história concreta da
criação e da redenção",[9]
podemos concluir que todos estes desenvolvimentos que intentam construir uma
metafísica da Trindade são arbitrários ou, no dizer de Bavinck, "são de
origem humana e, portanto, limitados, sujeito e erro e falíveis".[10]
Muito embora Bavinck continue usando a terminologia teológica clássica ele
compreende que "a palavra está atras da idéia, e a idéia atras da
realidade. Apesar de não poder preservar a realidade a não ser dessa forma, nós
nunca devemos nos esquecer de que é a realidade que conta, e não a
palavra".[11]
Tentando,
também, dar expressão ao mistério da Trindade, K. Barth pontua que a palavra
"Trindade" não fala de três deuses, mas do Deus uno e único.
Escrevendo um dos mais conhecidos comentários do Credo Apostólico, e falando
acerca da estrutura trinitária deste documento, Barth nos diz que cada sessão
deste Símbolo de Fé está interligado ao outro. Na realidade, tudo quanto se diz
no Credo, seja a respeito do Deus criador, seja a respeito do Deus que atua em
Jesus Cristo, seja a respeito do Deus em sua ação como Espírito Santo, se diz,
não como quem fala a respeito de três "departamentos" divinos com um
"diretor" a frente de cada um. Se trata sim, diz Barth,
"da obra una do Deus uno (grifo dele), porém a dita obra é em si movimento. Porque o
Deus no qual tem que crer os cristãos não é um Deus morto nem um Deus
solitário, mas, sendo ele Único, é em si mesmo, em sua divina majestade nas
alturas, um porém não só; e assim sua obra, na qual ele nos encontra e na qual
podemos conhece-lo, é uma obra em si dinâmica e viva; é em si mesmo por
natureza e eternamente, e para nós no tempo, o Uno em três modos de ser."[12]
Barth
parece ter consciência do perigo de se usar a palavra "modo" para se
referir a Deus. Ela pode nos levar ao modalismo.
Contudo, mesmo consciente das dificuldades de usar esta expressão ele usa com
entendimento e tenta justificar seu uso dizendo que a palavra "'persona'
significava, no uso lingüístico latino e grego, precisamente o que eu acabo de
significar com os 'modos de ser'".[13]
A
dificuldade que Barth tem em usar o termo "pessoa" em relação a
Trindade reside no fato de que, se hoje falamos de pessoa, involuntariamente se
faz presente a noção do modo humano de se ser pessoa. Ou seja, para Barth, esta
noção referencial humana é muito pouca adequada para ser aplicada a Deus pai,
Filho e Espírito Santo. Quando a Igreja cristã fala do Deus trino, ela quer
dizer que não está aprisionado em "um" modo de ser, como os homens,
"mas que é tanto o Pai, como o Filho como o Espírito Santo; três vezes Uno
e o Mesmo; trino, porém antes de tudo trino e uno; é Pai, Filho e Espírito Santo, em si mesmo, nas alturas e em
sua revelação".[14]
Outro que segue um caminho parecido com Barth neste aspecto é Bavinck para quem
"estas três pessoas não são meramente três modos de revelação. Elas são
modos de ser".[15]
Ou seja, o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um Ser que compartilha da mesma
e única natureza divina e de suas características. No entanto cada qual possui
seu próprio nome e características próprias através das quais pode ser
diferenciado dos demais.
3.
Um Vocabulário Importante
Infelizmente temos que admitir
que, as palavras que até hoje vem sendo usadas pela Igreja na discussão sobre a
Santíssima Trindade, muitas vezes são completamente desconhecida. De fato todas
elas são provenientes da cultura grega ou latina. Todas estão eivadas de significados
que já não nos dizem quase nada ou que foram modificados. Isto prejudica uma
boa compreensão da doutrina e pode ocasionar o surgimento de interpretações não
muito adequadas. Contudo é importante conhecer estes termos que já foram usados
e que ainda hoje servem como referencial para a discussão ortodoxa em torno
deste tema tão intrigante. Dentre as palavras que poderiam ser citadas para
conhecimento, escolhemos as principais, que são:
Essência:
Esta
palavra no grego é “ousia” e se refere ao que há de comum na Trindade. Na
Trindade a essência indica o “elemento substancial comum às três pessoas
divinas”.[16]
Hipóstase:
É o ser
explicado em separado, ou a substância individual distinta de todas as outras,
auto-existente e sujeito de suas ações.
Natureza:
Do grego
“fysis”, este termo aponta no caso da teologia para o núcleo essencial de uma
pessoa ou coisa. Pode ser visto como sinônimo de essência ou de substância mas
sempre indica ação.
Pessoa:
Do grego “prósôpon”, significava
originalmente a máscara ou o papel que era representado no teatro. A definição
que Kloppenburg nos dá é que pessoa “é a substancia individual de natureza
racional que existe por si. Calvino, por seu turno, define pessoa como
"uma substância na essência de Deus, a qual, comparada com as outras, se
distingue por uma propriedade incomunicável".[17]
Substância:
Desde Aristóteles que a
substância vem sendo entendida como aquilo que é em si e não no outro. Quanto à
Trindade o termo é empregado para falar daquilo que é comum às três pessoas.
Substância é a palavra usada pala falar do próprio ser quem tem em si sua
consistência de ser. A substância existe em si, o acidente existe no sujeito.
4. A Definição dos Símbolos de Fé
Desde o
início que o cristianismo tem expressado sua fé através de credos ou símbolos
de fé. O que nos chama a atenção nos credos oficiais da Igreja, no entanto, é
sua estrutura claramente trinitária. Antes mesmo até da criação da palavra
“Trindade”, o credo apostólico já se dividia em três parte: Creio em Deus
Pai...Creio em Jesus cristo...Creio no Espírito Santo. Os credos históricos,
como veremos são sim, expressões temporalmente condicionadas e, como tal, usa
uma linguagem também limitada. No entanto
“As expressões da fé trinitária
não podem ser deixadas de lado nem substituídas...O autêntico caminho da
renovação da linguagem sobre Deus passa por uma assimilação profunda de todos
os esforços feitos pelos teólogos do passado”.[18]
Com base nos credos Apostólico e
Niceno, podemos resumir nossa crença, e a crença das comunidades cristãs, em
pelo menos três afirmações:
(i)
Há
um só Deus
(ii)
Na
unidade da divindade existem três pessoas
(iii)
Cada
pessoa é plenamente Deus
É
meditando nos símbolos de fé da Igreja que compreendemos que "somente o
Pai tem a paternidade, somente o Filho tem a geração e somente o Espírito
possui a qualidade de proceder do Pai e do filho".[19]
Pensando ainda sobre as categorias de uma Trindade econômica Bavinck também nos
ensina que: "o Pai é de quem, o
Filho é através de quem e o Espírito
Santo é em quem todas as coisas
existem."[20]
5.
Erros a serem evitados
No decorrer da história da Igreja
muitos teólogos se esforçaram por conseguir definir ou explicar a doutrina da
Trindade de forma mais clara e compreensiva. E experiência nos mostra que cada
um deles acabava por cair em um tipo peculiar de engano. Desnecessário dizer
que, com o passar dos tempos, a Igreja ia reiteradamente rejeitando cada uma
destas posturas e solidificando aquela que viria ser identificada com a postura
considerada ortodoxa. Apresentaremos agora, as principais interpretações e
explicações que foram surgindo no decorrer da história.
Triteísmo:
Diante da afirmação ortodoxa de
uma trindade de pessoas, é possível cometer o erro do triteísmo, ou seja,
separar ou distinguir tanto as pessoas que se acaba por criar três deuses
distintos. Desta forma, assim como há três pessoas distintas em Deus, também
haveriam três essências ou substâncias ou obviamente três deuses.
Modalismo:
Como sugere o próprio nome, esta
postura que tem origem no século III, entende que o Pai, o Filho e o Espírito
Santo, são apenas três modos ou maneiras do mesmo e único Deus se manifestar.
Normalmente esta interpretação costuma associar cada “manifestação” de Deus a
um momento histórico bem definido. Assim, o Pai estaria ligado ao período do
Primeiro testamento, o Filho ao Novo Testamento e o Espírito Santo ao período
da Igreja.
Monarquianismo:
Esta postura teológica tem origem
no século II e é o resultado da tentativa de defender a fé monoteísta dos
cristãos frente à acusação dos intelectuais pagãos de que o cristianismo também
seria um tipo de politeísmo. Para rebater esta acusação, alguns cristãos usavam
o slogan monarchiam tenemus,
ressaltando dessa forma que só havia um Deus. Esta postura pode ser
modernamente identificada no movimento Unitariano.
Adocionistas:
Esta posição teológica que toma
forma no século IV, parte da interpretação monarquiana para afirmar que Jesus
era simplesmente um homem que, de alguma forma, por adoção, foi elevado à
condição de Deus. Negando a natureza divina de Jesus, eles negam a Trindade.
Arianismo:
Este movimento estava ligado a
figura de um teólogo chamado Ário, que no século IV, afirmava que Jesus era uma
criatura de Deus. Não sendo “gerado” do Pai, mas “criado” pelo Pai, Ário negava
assim a consubstancialidade do Filho com o Pai e desta forma sua natureza
divina. Modernamente os “Testemunhas de Jeová” têm afirmado estas mesmas
doutrinas.
Subordinacionismo:
Aqueles que assumem esta postura
normalmente também acreditam na existência de três pessoas na Trindade, no
entanto, acreditam que há uma espécie de subordinação do Espírito e do Filho,
ao Pai. Uma postura mais radical de subordinacionismo negaria a
consubstancialidade do Filho e do Espírito, para com o Pai. Talvez um dos
subordinacionista mais famosos seja Orígenes, grande teólogo de Alexandria.
Qualquer outra postura teológica
que negue a existência de qualquer uma das três pessoas, a existência de um
único Deus, a relação de consubstancialidade entre as pessoas ou a existência
de três Deuses negam, de fato, a posição ortodoxa sobre a Trindade.
6.
Novas formas de se falar da
Trindade
Este
talvez seja o momento mais difícil de nossa exposição: a confecção de uma nova
forma de se dizer as mesmas coisas e de afirmar as mesmas verdade. Pretender
fazer algo parecido significa estar disposto a correr o perigo de negar ou
desconhecer as elaborações do passado. O fato é que “não se pode mais continuar
falando da mesma forma a respeito da trindade”.[21]
De
alguma forma esta doutrina já não causa em nossas comunidades o mesmo impacto
que causava nas comunidades primitivas. Já não nos damos conta da necessidade
de falar para nosso povo, não apenas usando as categorias de nosso tempo mas
respondendo as inquietações e demandas deste mesmo povo. Este é o desafio que
se encontra diante de nós. Segundo Catão, “O grande desafio, porém, é de
descobrir uma caminho novo que permita falar da Trindade de maneira coerente,
apesar dos limites de todo conhecimento humano”.[22]
Precisamos enfrentar este desafio sabendo, porém, que talvez não encontremos
uma forma mais “atualizada” para falar a mesma verdade.
Entendemos,
como afirma George Lindbeck, que há uma diferença entre a doutrina e a sua
formulação. Se aceitássemos a formulação do Credo Niceno, por exemplo, sem
compreender que ela dá conta de forma plena das necessidade da Igreja em um determinado momento histórico e sob um
determinado condicionamento cultural (grifo nosso), ou seja, se
entendêssemos que a “formulação” da doutrina goza de caráter absoluto, como
enfim só às Escrituras atribuímos, então “teríamos que admitir extraordinário
privilégio cultural à filosofia grega da qual esses conceitos dependem.
Acabaríamos transformando a filosofia grega em decisivo momento da revelação”.[23]
Pior, confundindo o acessório com o essencial nos tornaríamos servo das
formulações dogmáticas posteriores e fazendo isso recusaríamos aquilo que
Tillich define como “princípio Protestante”, além, é claro, de absolutizar o
relativo, e agindo desta forma reproduziríamos os “traços demoníacos”[24]
do fundamentalismo.
Modernamente
alguns teólogos preferem falar de Deus e da trindade usado definições tais como
“A divina essência espiritual e infinitamente viva, compartilha-se em si mesma,
em uma autonomia tríplice que se exprime com as palavras do Pai, filho e
Espírito”.[25]
Esta expressão “autonomia tríplice”, que tentava falar ao homem moderno, parece
que também não dá conta da realidade da Trindade. E a meu ver, a raiz da
deficiência reside no fato de que, até aqui temos falado, apenas, da chamada
“Trindade Econômica” ou seja daquela forma de entender a trindade baseada na
maneira de como ela se manifesta na história: como Pai – criador, como Filho –
Redentor e como Espírito Santo – santificador. Esta tem sido a ênfase entre os
teólogos modernos. O problema com esta abordagem tão sofisticada, especulativa
e teorética é que todo este aglomerado de conceitos sobre substância ou
essência, “provocou uma abstração relacional e uma especulação filosófica e
teológica em torno da Trindade que...comprometeu a espiritualidade cristã”,[26]
diz o Rev. Ricardo Barbosa. E a ausência de uma espiritualidade relacionada com
o que se crê, é fundamental para a saúda da Igreja. A ortodoxia sempre levou à
doxologia. Uma doutrina ortodoxa sem uma correta expressão na espiritualidade é
tão prejudicial quanto uma espiritualidade sem fundamento doutrinário adequado.
Precisamos,
a meu ver, redescobrir a relevância da “Trindade Imanente” e as implicações
desta doutrina sobre nossa espiritualidade e sobre nossa vida. Ao fazer isso
temos que deslocar o centro de gravidade de nosso interesse, de apenas uma
“predição” ortodoxa, para uma “predicação ortodoxa” que “diga” e que “proponha”
algo ao homem no século XXI.
Esta
designação “Trindade Imanente” nos reporta para uma visão da Trindade dentro de
uma compreensão de sua eternidade e comunhão interpessoal. O frei Boaventura
Kloppenburg define Trindade Imanente como a “Trindade em si mesma, em sua
eternidade e em sua comunhão pericorética[27]
entre Pai, Filho e Espírito Santo”.[28]
Investir nesta segunda designação da Trindade implica em voltar-se para
considerar que “a pessoalidade da Três Pessoas da trindade constituem a
primeira realidade, e não a essência”.[29]
Uma vez que nossa sociedade tem
sido marcada pelo individualismo, pela competitividade, pelo consumo
desenfreado e pela despersonificação do homem, é imprescindível que a Igreja
resgate e desenvolva uma teologia que reflita sobre um Deus relacional que é
comunhão em si e que nesta comunhão, e a partir desta comunhão define suas
pessoas. O Deus dos cristão não é a solidão absolutizada mas uma existência em
comunhão e para a comunhão.
É bem verdade que os irmãos da reta doutrina não gostam de trabalhar
outros aspectos que fujam da ortodoxia já estabelecida. Mas creio que seria
também relevante compreender aquilo que Leonardo Boff disse, certa vez, a um
estudante muçulmano que acompanhava uma de suas aulas na Alemanha:
"chamamos de Pai o Deus que está acima de nós, de Filho o que está junto
conosco e de Espírito Santo o Deus que está dentro de nós."[30]
Efetivamente, quando redescobrimos esta dimensão relacional e tentamos
compreender a Trindade ao nível da experiência, compreendemos que:
"a
um Deus que transcende, que é maior, que não tem origem, que é um transfundo de
mistério, chamamos de pai. Um Deus que se fez companheiro, que anda conosco,
chamamos de Filho. O Deus que está dentro de nós, como entusiasmo, como fogo
interior, como vida, de Espírito Santo".[31]
Este Deus relacional que é
pessoal e que trata com pessoas não pode deixar de “se entristecer” diante do
que se tem feito com as pessoas em nossa sociedade. Numa cultura capitalista,
só tem valor que produz, por isso se explica o esquecimento em que colocamos
nossos velhos, mulheres, crianças e desempregados. Ricardo Barbosa nos fala de
um encontro a que compareceu e no qual ouviu a seguinte afirmação:
“O
dia em que o ser humano for capaz de colocar-se diante de uma mulher negra,
pobre, velha, doente, prostituta, bissexual, aidética e conseguir perceber
beleza e dignidade humana, e ser capaz de relacionar-se cm afeto e ternura,
significa que conseguiu romper com os vícios criados por uma sociedade
consumista e impessoal”.[32]
Por fim, é importante compreender
que embora a linguagem que usamos para designar e predicar sobre Deus e sobre a
trindade seja uma linguagem inadequada e, desde sempre limitada, não devemos
evitar dizer. Não devemos deixar de falar. Devemos, no entanto, reconhecer que:
“Seria absurdo ao último grau,
imaginar que nós, que não compreendemos o nosso próprio ser, nem as forças da
natureza que nos rodeiam, pudéssemos compreender os mistérios profundos da
Divindade. É esta, de todas as doutrinas cristãs, talvez a mais difícil de
entender e de explicar”.[33]
Concordamos
com Boetner quando afirma que a Trindade não é contradição mas sim mistério. E
é por concordar com isso, que a dimensão espiritual e contemplativa precisa
sempre ser ressaltada. Para concluir este tópico gostaria de citar as palavras
de S. Boaventura em sua meditação Itinarário
da Mente para Deus:
“Ninguém creia que lhe baste a
leitura sem a unção, a especulação sem a devoção, a investigação sem a
admiração, a atenção sem a alegria, a atividade sem a piedade, a ciência sem a
caridade, a inteligência sem a humildade, o estudo sem a graça divina, a
pesquisa humana sem a sabedoria inspirada por Deus”.[34]
[1]
CATÃO, F. A Trindade – Uma Aventura
Teológica, p. 3
[2]
Ver sua contribuição para a coleção Mysterium
Salutis Editora Vozes II/1, p.285
[3]
CATÃO, F. A trindade – Uma Aventura
Teológica, p. 15
[4]
FIORENZA, F. & GALVIN, J.P. Teologia
Sistemática: Perspectivas Católico-Romanas Vol. I, p. 213
[5]
CATÃO, F. Trindade – uma Aventura
Teológica, p. 4
[6]
LOHSE B. A Fé Cristã Através dos Tempos,
p. 47
[7]
BAVINCK, HERMANN Teologia Sistemática,
p. 170
[8]
BOFF, LEONARDO A Trindade e a Sociedade,
p. 74
[9]
FIORENZA, F. & GALVIN, J.P. Teologia
Sistemática: Perspectivas Católico-Romanas Vol. I, p. 215
[10]
BAVINCK, HERMANN Teologia Sistemática,
p. 170
[11]
BAVINCK, HERMANN Teologia Sistemática,
p. 171
[12]
BARTH, KARL Esbozo de Dogmática, p.
52
[13]
BARTH, KARL Esbozo de Dogmática, p.
53
[14]
BARTH, KARL Esbozo de Dogmática, p.
53
[15]
BAVINCK, HERMANN Teologia Sistemática,
p. 171
[16]
KLOPPENBURG, B. Trindade; O Amor em Deus,
p.64
[17]
CALVINO, JEAN Institución de la Religión Cristiana,
I.xiii.6
[18]
CATÃO, F. A Trindade – Uma Aventura
Teológica, p. 6, 7
[19]
BAVINCK, HERMANN Teologia Sistemática,
p. 171
[20]
BAVINCK, HERMANN Teologia Sistemática,
p. 171
[21]
CATÃO, F. A Trindade – Uma Aventura
Teológica, p. 5
[22]
CATÃO, F. A Trindade – Uma Aventura
Teológica, p. 5
[23]
MARASCHIN, JACI O Espelho e a
Transparência, p. 97
[24]
TILLICH, PAUL Teologia Sistemática,
p. 13 Para Tillich estes traços demoníacos existem quando “o fundamentalismo se
combina com uma tendência anti-teológica...A verdade teológica de ontem é defendida
como a verdade teológica de hoje e de amanhã...eleva algo finito e transitório
à validez infinita e eterna...destrói a humilde honestidade pela busca pela
verdade, divide a consciência de seus seguidores que refletem e os torna
fanáticos”.
[25]
FEINER, J. & VISCHER, L. (Public.)O
Novo Livro da Fé – A Fé Cristã Comum, p. 166, 167
[26]
BARBOSA, RICARDO A Trindade, o Pessoal e
o Social na Espiritualidade Cristã, Vox Scripturae 5:1 (Março de 1995)
[27]
Pericorética vem do grego: “girar em torno” e quer ressaltar a mútua
compenetração sem mistura das pessoas. Este termo faz a ponte entre a unidade e
a trindade u seja, faz a comunhão entre elas
[28]
KLOPPENBURG, B. Trindade: Amor em Deus,
p. 68
[29]
BARBOSA, RICARDO A Trindade, o Pessoal e
o Social na Espiritualidade Cristã, Vox Scripturae 5:1 (Março de 1995)
[30]
BOFF, LEONARDO Fundamentalismo: A
Globalização e o Futuro da Humanidade, p. 80
[31]
BOFF, LEONARDO Fundamentalismo: A
Globalização e o Futuro da Humanidade, p. 80
[32]
BARBOSA, RICARDO A Trindade, o Pessoal e
o Social na Espiritualidade Cristã, Vox Scripturae 5:1 (Março de 1995)
[33]
BOETTNER L. & WARFIELD B.B. A
Doutrina da Trindade, p. 86
[34]
Citado por Boaventura Kloppenburg em Trindade:
O Amor em Deus, p. 11
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