terça-feira, 9 de setembro de 2014

Tópicos Introdutórios à Teologia Sistemática III



 Prof. Rev.. Jorge Aquino (Movimento Anglicano no Brasil)
  
III. A Trindade


Só pode falar apropriadamente sobre a Trindade aquele que conhece as dificuldades inerentes de se falar sobre Deus, uma vez que toda a nossa dificuldade de falar da Trindade advém de nossa “dificuldade de falar de Deus”.[1]

Uma via de acesso privilegiada à realidade da Trindade tem sido a do culto. Todas as nossas celebrações costumam ter início com a invocação da Trindade. Boa parte das bênçãos de encerramento também lembram o Deus trino, para não falar das orações, dos cânticos, das doxologias e recitação dos salmos. A Trindade, de fato está presente em nosso momento cúltico. Modernamente mais uma forma de se lembrar desta realidade divina tem sido o movimento de descobrimento dos ícones, que tanta cor e vida tem trazido à contemplação entre os cristãos ao redor do mundo.

Discordamos da opinião de Karl Rahner, para quem, se o dogma trinitário tivesse que ser eliminado como falso, a maior parte da literatura religiosa poderia permanecer quase inalterada.[2] Entendemos que uma séria reflexão sobre a Trindade não apenas nos manterá dentro de uma sólida tradição cristã, mas poderá servir de base para toda uma nova compreensão de nossa espiritualidade e de nosso envolvimento social. Tentaremos, portanto, com este capítulo, refletir um pouco mais sobre esta realidade que a todos incomoda, porque permanece inescrutável em seu mistério.

1.      A Fundamentação Bíblica

Antes de iniciar qualquer discussão sobre a doutrina da Trindade é de suma importância dar uma olhada sobre o que diz as Escrituras a respeito. São elas que testificam deste Deus, portanto elas não nos deixarão sem pistas importantes.

Ao nos aproximar do texto sagrado, no entanto, temos de ter em mente uma verdade básica que é muitas vezes esquecida por aqueles que procuram nas Escrituras as respostas para suas dúvidas. Esta verdade básica afirma que a Bíblia é o registro inspirado da revelação gradativa e progressivamente de Deus.

O que queremos afirmar com isso? Queremos, com esta afirmação básica, relembrar que as Escrituras não caíram do céu pronta, acabada e encadernada, conforme se encontra em nossa estante. Ela passou por um longo e difícil processo de transmissão oral e escrita, foi alvo de várias recensões e edições em sua história, a acabou por ter seu texto final e também seu cânon sendo definido nos primeiros séculos depois de Cristo.

Ela foi o resultado do trabalhos de inúmeras pessoas em um espaço de tempo enorme, sem falar das diferenças sociais, culturais e linguísticas de seus escritores. Com certeza podemos dizer que ela só existe hoje, em função de um ato miraculoso de Deus em preserva-la para a edificação de seu povo.

Por causa disto, compreendemos muito claramente que as verdades de que ela nos fala, não foram todas reveladas ao mesmo tempo e da mesma forma. Muitos séculos se passaram entre o chamado de Deus a Abraão e sua revelação mais plena em Jesus Cristo. Muita diferença há entre os conceitos mosaicos referentes à lei e a forma graciosa de Deus nos tratar em Cristo. Esta revelação de Deus, portanto, levou tempo e não foi dada toda de uma vez. Foi gradativa e progressiva. No Novo Testamento, cremos, encontramos de forma muito mais acabada e plena as doutrinas essenciais à nossa vida de cristãos.

Muitos escritores sábios e piedosos vão até os textos do Primeiro Testamento cheios de convicção de poderem encontrar lá “provas” de que esta doutrina já era revelada naquele tempo. Alguns tentam ver resquícios desta verdade nos “textos plurais”, aqueles onde Deus fala na primeira pessoa do plural; outros vão tentar encontrar evidências da trindade na tríplice repetição do adjetivo “Santo”, entendendo que a Bíblia já se referia a uma trindade de pessoas divinas que seriam vistas como “santas”. Todo este trabalho, no entanto, se revela como inócuo, uma vez que seria impossível encontrar, dentro da estrutura mental monoteísta dos judeus, algum espaço para a existência de três pessoas divinas. Este raciocínio é absurdamente anacrônico. É por isso que o Dr. Francisco Catão se refere a estas “piedosas interpretações” que estão a muitas gerações no seio da Igreja, como “verdadeira violência ao texto”.[3] Há quase uma completa concordância entre os exegetas e teólogos hoje acerca do fato de que a "Bíblia hebraica não contém a doutrina da Trindade" e que "o Novo Testamento não contém a doutrina explícita da Trindade".[4]
O Novo Testamento revela, não de forma plena mas de forma significativa, algumas pistas extremamente importantes sobre o tema da Trindade. Em primeiro lugar, nos parece razoavelmente claro, que este tema não surgiria alheio à discussão cristológica. É num ambiente de reflexão e de adoração à figura de Jesus Cristo, que surge a oportunidade de se refletir sobre a essência deste Deus.

As primeiras citações significativas sobre a realidade trina de Deus podem ser vista nas referências ao batismo de Jesus, onde se diz que o Pai fala dos céus, o Espírito desce em forma de pomba e o Filho é apresentado ao mundo como o “Filho amado” a quem todos devemos ouvir. (Mt 3:16,17; Mc 1:9-11; Lc 3:21-22).

Outro texto que servirá de base para a reflexão posterior da Igreja será aquele em que Jesus comissiona sua Igreja a ir por todo o mundo pregando o evangelho. Aqui se diz que todos os que receberem a fé deverão ser batizados “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. (Mt 28:19).

Há, ainda, os textos paulinos clássicos, dentre os quais destacamos aquele em que Paulo fala das divisões dos dons, ministérios e ações, colocando-as sob a direção do mesmo Espírito, Senhor e Deus (I Co 12:4-6); há também a bênçãos trinitárias, onde Paulo invoca a graça de Jesus, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo (II Co 13:13).

Desde o Primeiro Testamento que a ênfase no monoteísmo era uma doutrina clara (Dt 6:4,5; Is 44:6-45:25). O Novo Testamento reafirma a mesma ênfase (Mc 12:29, 30; I Co 8:4; Ef 4:6; I Tm 2:5), mas, algumas passagens deixa bem clara que a pessoa de Cristo assume uma posição privilegiada, sendo identificado com o Pai e até recebendo adoração. O prólogo do evangelho de João é muito claro ao identificar o “Verbo” com “Deus”, e ao afirmar muito claramente que este “verbo” se encarnou e habitou entre nós (Jo 1:1, 14). Apesar de todas estas pistas, a palavra “Trindade” não aparece em nenhum texto do Novo Testamento, e é só com Tertuliano que ela surgirá com a idéia que temos hoje.

2.      A Experiência da História

O estudo da história da Igreja nos fará ver que os principais Pais da Igreja primitiva conheciam algum tipo de Trindade na Divindade. Mas não devemos esquecer que nossa idéia de Trindade, tão cara à tradição cristã, nos foi legada por meio de uma relação entre o monoteísmo judaico, modificado pelo cristianismo, e a tradição filosófica helênica, que segundo Catão, “procurava definir o que tinha de próprio cada realidade”.[5]

Foi justamente ai, no contexto da expansão da Igreja pelo mundo helenizado, que ela se viu dentro de uma relação inevitável mas necessária de diálogo e contaminação. Ao se ver forçada a expressar sua fé de forma compreensível aos gregos ela permitiu que conceitos metafísicos que se concentravam na ontologia tomassem o lugar da forma concreta do discurso bíblico. Ao falar das diferenças entre o pensamento grego e o judaico, Lohse nos diz que “o pensamento grego difere do bíblico sobretudo pelo fato de que, para o último, a verdade de Deus se revelou na história, ao passo que, para os gregos, ela se baseia no ser metafísico”.[6]
 
Quando a Igreja aplicou esta nova forma de pensamento à sua concepção de Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, poderiam muito bem serem interpretados como “autonomias hipostáticas metafísicas”. Há aqui uma nítida mudança no discurso da Igreja. Antes toda a alusão era feita à História: "não podemos parar de falar sobre o que temos visto e ouvido", "ele foi visto por muitas testemunhas", etc. há inúmeras referências no Novo testamento que atestam a importância do dado histórico e testemuhal para a formação da teologia cristã primitiva. O contato com a cultura helenista, contudo, operou uma enorme mudança na linguagem. Uma mudança necessária, para quem desejava expandir a fé atingindo também os gentios, mas uma mudança que marcou uma guinada na forma de se fazer teologia.

Bavinck faz referência a este momento na história da Igreja em que ela passou a adotar uma nova linguagem, distinta da usada nas Escrituras, para fazer teologia. Para ele isto deveria ser compreendido como algo natural uma vez que "as Sagradas Escrituras não foram dadas por Deus à Igreja para serem desconsideradamente repetidas, mas para serem entendidas em toda a sua plenitude e riqueza".[7] Além do mais, raciocina Bavinck, a história vem demostrando que eles são importantes para preservar a verdade da Escrituras contra os que preferem seguir os erros humanos.

O principal responsável pela criação de uma linguagem trinitária ortodoxa dentro dos padrões helenísticos, foi o jurista e teólogo leigo Tertuliano (160-220), responsável também por inúmeras outras palavras utilizadas até hoje dentro da teologia. Pois bem, foi Tertuliano o responsável, não apenas pela criação da palavra “Trindade”, mas também pela tentativa de definir a realidade desta Trindade com a expressão “una substantia, tres personae”, ou seja, uma substância em três pessoas. É claro que bem antes outros teólogos faziam experiência com estas palavras, mas foi Tertuliano quem resumiu e condensou aquela que será a fé da Igreja até hoje. A tese fundamental que Tertuliano anunciava dizia: “Unitas ex semetipsa derivans Trinitatem”, que queria dizer: “a unidade faz por si mesmo derivar a trindade”. Leonardo Boff nos diz o que Tertuliano queria dizer com esta expressão ao afirmar:

“Deus não é simplesmente um, mas uno. Em outras palavras, Deus não é uma mônada encerrada sobre si mesma, mas uma realidade em processo (dispensatio ou oeconomia) constituindo uma segunda e uma terceira pessoa que fazem parte de sua substância e de sua própria ação. Estas duas pessoas (indivíduos concretos) são distintas mas não são divididas (distincti, non divisi), são diversas mas não são separadas (discreti, non separati). Este processo é eterno pois o Pai sempre gera o Filho e o faz sair dele (prolatio); o mesmo Pai pelo Filho origina também eternamente o Espírito Santo. Existe uma ordem (dispensatio, oeconomia) neste processo de comunicação: o Pai é a totalidade da substância divina; o Filho e o Espírito Santo são portiones totius, comunicações individuais (pessoais) deste todo substancial”.[8]

Todos estes nomes são desconhecidos da Escritura. Isto ocorre porque ela não estava preocupada em fazer uma espécie de metafísica de Deus. Uma vez que a linguagem bíblica é "econômica", ou seja "centrada na história concreta da criação e da redenção",[9] podemos concluir que todos estes desenvolvimentos que intentam construir uma metafísica da Trindade são arbitrários ou, no dizer de Bavinck, "são de origem humana e, portanto, limitados, sujeito e erro e falíveis".[10] Muito embora Bavinck continue usando a terminologia teológica clássica ele compreende que "a palavra está atras da idéia, e a idéia atras da realidade. Apesar de não poder preservar a realidade a não ser dessa forma, nós nunca devemos nos esquecer de que é a realidade que conta, e não a palavra".[11]

Tentando, também, dar expressão ao mistério da Trindade, K. Barth pontua que a palavra "Trindade" não fala de três deuses, mas do Deus uno e único. Escrevendo um dos mais conhecidos comentários do Credo Apostólico, e falando acerca da estrutura trinitária deste documento, Barth nos diz que cada sessão deste Símbolo de Fé está interligado ao outro. Na realidade, tudo quanto se diz no Credo, seja a respeito do Deus criador, seja a respeito do Deus que atua em Jesus Cristo, seja a respeito do Deus em sua ação como Espírito Santo, se diz, não como quem fala a respeito de três "departamentos" divinos com um "diretor" a frente de cada um. Se trata sim, diz Barth,

"da obra una do Deus uno (grifo dele), porém a dita obra é em si movimento. Porque o Deus no qual tem que crer os cristãos não é um Deus morto nem um Deus solitário, mas, sendo ele Único, é em si mesmo, em sua divina majestade nas alturas, um porém não só; e assim sua obra, na qual ele nos encontra e na qual podemos conhece-lo, é uma obra em si dinâmica e viva; é em si mesmo por natureza e eternamente, e para nós no tempo, o Uno em três modos de ser."[12]

Barth parece ter consciência do perigo de se usar a palavra "modo" para se referir a Deus. Ela pode nos levar ao modalismo. Contudo, mesmo consciente das dificuldades de usar esta expressão ele usa com entendimento e tenta justificar seu uso dizendo que a palavra "'persona' significava, no uso lingüístico latino e grego, precisamente o que eu acabo de significar com os 'modos de ser'".[13]

A dificuldade que Barth tem em usar o termo "pessoa" em relação a Trindade reside no fato de que, se hoje falamos de pessoa, involuntariamente se faz presente a noção do modo humano de se ser pessoa. Ou seja, para Barth, esta noção referencial humana é muito pouca adequada para ser aplicada a Deus pai, Filho e Espírito Santo. Quando a Igreja cristã fala do Deus trino, ela quer dizer que não está aprisionado em "um" modo de ser, como os homens, "mas que é tanto o Pai, como o Filho como o Espírito Santo; três vezes Uno e o Mesmo; trino, porém antes de tudo trino e uno; é Pai, Filho e Espírito Santo, em si mesmo, nas alturas e em sua revelação".[14] Outro que segue um caminho parecido com Barth neste aspecto é Bavinck para quem "estas três pessoas não são meramente três modos de revelação. Elas são modos de ser".[15] Ou seja, o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um Ser que compartilha da mesma e única natureza divina e de suas características. No entanto cada qual possui seu próprio nome e características próprias através das quais pode ser diferenciado dos demais.


3.      Um Vocabulário Importante

Infelizmente temos que admitir que, as palavras que até hoje vem sendo usadas pela Igreja na discussão sobre a Santíssima Trindade, muitas vezes são completamente desconhecida. De fato todas elas são provenientes da cultura grega ou latina. Todas estão eivadas de significados que já não nos dizem quase nada ou que foram modificados. Isto prejudica uma boa compreensão da doutrina e pode ocasionar o surgimento de interpretações não muito adequadas. Contudo é importante conhecer estes termos que já foram usados e que ainda hoje servem como referencial para a discussão ortodoxa em torno deste tema tão intrigante. Dentre as palavras que poderiam ser citadas para conhecimento, escolhemos as principais, que são:

Essência:

Esta palavra no grego é “ousia” e se refere ao que há de comum na Trindade. Na Trindade a essência indica o “elemento substancial comum às três pessoas divinas”.[16]

Hipóstase:

É o ser explicado em separado, ou a substância individual distinta de todas as outras, auto-existente e sujeito de suas ações.

Natureza:

Do grego “fysis”, este termo aponta no caso da teologia para o núcleo essencial de uma pessoa ou coisa. Pode ser visto como sinônimo de essência ou de substância mas sempre indica ação.

Pessoa:

Do grego “prósôpon”, significava originalmente a máscara ou o papel que era representado no teatro. A definição que Kloppenburg nos dá é que pessoa “é a substancia individual de natureza racional que existe por si. Calvino, por seu turno, define pessoa como "uma substância na essência de Deus, a qual, comparada com as outras, se distingue por uma propriedade incomunicável".[17]

Substância:

Desde Aristóteles que a substância vem sendo entendida como aquilo que é em si e não no outro. Quanto à Trindade o termo é empregado para falar daquilo que é comum às três pessoas. Substância é a palavra usada pala falar do próprio ser quem tem em si sua consistência de ser. A substância existe em si, o acidente existe no sujeito.

4.      A Definição dos Símbolos de Fé

Desde o início que o cristianismo tem expressado sua fé através de credos ou símbolos de fé. O que nos chama a atenção nos credos oficiais da Igreja, no entanto, é sua estrutura claramente trinitária. Antes mesmo até da criação da palavra “Trindade”, o credo apostólico já se dividia em três parte: Creio em Deus Pai...Creio em Jesus cristo...Creio no Espírito Santo. Os credos históricos, como veremos são sim, expressões temporalmente condicionadas e, como tal, usa uma linguagem também limitada. No entanto

“As expressões da fé trinitária não podem ser deixadas de lado nem substituídas...O autêntico caminho da renovação da linguagem sobre Deus passa por uma assimilação profunda de todos os esforços feitos pelos teólogos do passado”.[18]

Com base nos credos Apostólico e Niceno, podemos resumir nossa crença, e a crença das comunidades cristãs, em pelo menos três afirmações:

(i)                 Há um só Deus
(ii)               Na unidade da divindade existem três pessoas
(iii)             Cada pessoa é plenamente Deus

É meditando nos símbolos de fé da Igreja que compreendemos que "somente o Pai tem a paternidade, somente o Filho tem a geração e somente o Espírito possui a qualidade de proceder do Pai e do filho".[19] Pensando ainda sobre as categorias de uma Trindade econômica Bavinck também nos ensina que: "o Pai é de quem, o Filho é através de quem e o Espírito Santo é em quem todas as coisas existem."[20]

5.      Erros a serem evitados


No decorrer da história da Igreja muitos teólogos se esforçaram por conseguir definir ou explicar a doutrina da Trindade de forma mais clara e compreensiva. E experiência nos mostra que cada um deles acabava por cair em um tipo peculiar de engano. Desnecessário dizer que, com o passar dos tempos, a Igreja ia reiteradamente rejeitando cada uma destas posturas e solidificando aquela que viria ser identificada com a postura considerada ortodoxa. Apresentaremos agora, as principais interpretações e explicações que foram surgindo no decorrer da história.

Triteísmo:

Diante da afirmação ortodoxa de uma trindade de pessoas, é possível cometer o erro do triteísmo, ou seja, separar ou distinguir tanto as pessoas que se acaba por criar três deuses distintos. Desta forma, assim como há três pessoas distintas em Deus, também haveriam três essências ou substâncias ou obviamente três deuses.

Modalismo:

Como sugere o próprio nome, esta postura que tem origem no século III, entende que o Pai, o Filho e o Espírito Santo, são apenas três modos ou maneiras do mesmo e único Deus se manifestar. Normalmente esta interpretação costuma associar cada “manifestação” de Deus a um momento histórico bem definido. Assim, o Pai estaria ligado ao período do Primeiro testamento, o Filho ao Novo Testamento e o Espírito Santo ao período da Igreja.

Monarquianismo:

Esta postura teológica tem origem no século II e é o resultado da tentativa de defender a fé monoteísta dos cristãos frente à acusação dos intelectuais pagãos de que o cristianismo também seria um tipo de politeísmo. Para rebater esta acusação, alguns cristãos usavam o slogan monarchiam tenemus, ressaltando dessa forma que só havia um Deus. Esta postura pode ser modernamente identificada no movimento Unitariano.

Adocionistas:

Esta posição teológica que toma forma no século IV, parte da interpretação monarquiana para afirmar que Jesus era simplesmente um homem que, de alguma forma, por adoção, foi elevado à condição de Deus. Negando a natureza divina de Jesus, eles negam a Trindade.

Arianismo:

Este movimento estava ligado a figura de um teólogo chamado Ário, que no século IV, afirmava que Jesus era uma criatura de Deus. Não sendo “gerado” do Pai, mas “criado” pelo Pai, Ário negava assim a consubstancialidade do Filho com o Pai e desta forma sua natureza divina. Modernamente os “Testemunhas de Jeová” têm afirmado estas mesmas doutrinas.

Subordinacionismo:

Aqueles que assumem esta postura normalmente também acreditam na existência de três pessoas na Trindade, no entanto, acreditam que há uma espécie de subordinação do Espírito e do Filho, ao Pai. Uma postura mais radical de subordinacionismo negaria a consubstancialidade do Filho e do Espírito, para com o Pai. Talvez um dos subordinacionista mais famosos seja Orígenes, grande teólogo de Alexandria.
Qualquer outra postura teológica que negue a existência de qualquer uma das três pessoas, a existência de um único Deus, a relação de consubstancialidade entre as pessoas ou a existência de três Deuses negam, de fato, a posição ortodoxa sobre a Trindade.

6.      Novas formas de se falar da Trindade

Este talvez seja o momento mais difícil de nossa exposição: a confecção de uma nova forma de se dizer as mesmas coisas e de afirmar as mesmas verdade. Pretender fazer algo parecido significa estar disposto a correr o perigo de negar ou desconhecer as elaborações do passado. O fato é que “não se pode mais continuar falando da mesma forma a respeito da trindade”.[21]

De alguma forma esta doutrina já não causa em nossas comunidades o mesmo impacto que causava nas comunidades primitivas. Já não nos damos conta da necessidade de falar para nosso povo, não apenas usando as categorias de nosso tempo mas respondendo as inquietações e demandas deste mesmo povo. Este é o desafio que se encontra diante de nós. Segundo Catão, “O grande desafio, porém, é de descobrir uma caminho novo que permita falar da Trindade de maneira coerente, apesar dos limites de todo conhecimento humano”.[22] Precisamos enfrentar este desafio sabendo, porém, que talvez não encontremos uma forma mais “atualizada” para falar a mesma verdade.

Entendemos, como afirma George Lindbeck, que há uma diferença entre a doutrina e a sua formulação. Se aceitássemos a formulação do Credo Niceno, por exemplo, sem compreender que ela dá conta de forma plena das necessidade da Igreja em um determinado momento histórico e sob um determinado condicionamento cultural (grifo nosso), ou seja, se entendêssemos que a “formulação” da doutrina goza de caráter absoluto, como enfim só às Escrituras atribuímos, então “teríamos que admitir extraordinário privilégio cultural à filosofia grega da qual esses conceitos dependem. Acabaríamos transformando a filosofia grega em decisivo momento da revelação”.[23] Pior, confundindo o acessório com o essencial nos tornaríamos servo das formulações dogmáticas posteriores e fazendo isso recusaríamos aquilo que Tillich define como “princípio Protestante”, além, é claro, de absolutizar o relativo, e agindo desta forma reproduziríamos os “traços demoníacos”[24] do fundamentalismo.

Modernamente alguns teólogos preferem falar de Deus e da trindade usado definições tais como “A divina essência espiritual e infinitamente viva, compartilha-se em si mesma, em uma autonomia tríplice que se exprime com as palavras do Pai, filho e Espírito”.[25] Esta expressão “autonomia tríplice”, que tentava falar ao homem moderno, parece que também não dá conta da realidade da Trindade. E a meu ver, a raiz da deficiência reside no fato de que, até aqui temos falado, apenas, da chamada “Trindade Econômica” ou seja daquela forma de entender a trindade baseada na maneira de como ela se manifesta na história: como Pai – criador, como Filho – Redentor e como Espírito Santo – santificador. Esta tem sido a ênfase entre os teólogos modernos. O problema com esta abordagem tão sofisticada, especulativa e teorética é que todo este aglomerado de conceitos sobre substância ou essência, “provocou uma abstração relacional e uma especulação filosófica e teológica em torno da Trindade que...comprometeu a espiritualidade cristã”,[26] diz o Rev. Ricardo Barbosa. E a ausência de uma espiritualidade relacionada com o que se crê, é fundamental para a saúda da Igreja. A ortodoxia sempre levou à doxologia. Uma doutrina ortodoxa sem uma correta expressão na espiritualidade é tão prejudicial quanto uma espiritualidade sem fundamento doutrinário adequado.

Precisamos, a meu ver, redescobrir a relevância da “Trindade Imanente” e as implicações desta doutrina sobre nossa espiritualidade e sobre nossa vida. Ao fazer isso temos que deslocar o centro de gravidade de nosso interesse, de apenas uma “predição” ortodoxa, para uma “predicação ortodoxa” que “diga” e que “proponha” algo ao homem no século XXI.

Esta designação “Trindade Imanente” nos reporta para uma visão da Trindade dentro de uma compreensão de sua eternidade e comunhão interpessoal. O frei Boaventura Kloppenburg define Trindade Imanente como a “Trindade em si mesma, em sua eternidade e em sua comunhão pericorética[27] entre Pai, Filho e Espírito Santo”.[28] Investir nesta segunda designação da Trindade implica em voltar-se para considerar que “a pessoalidade da Três Pessoas da trindade constituem a primeira realidade, e não a essência”.[29]

Uma vez que nossa sociedade tem sido marcada pelo individualismo, pela competitividade, pelo consumo desenfreado e pela despersonificação do homem, é imprescindível que a Igreja resgate e desenvolva uma teologia que reflita sobre um Deus relacional que é comunhão em si e que nesta comunhão, e a partir desta comunhão define suas pessoas. O Deus dos cristão não é a solidão absolutizada mas uma existência em comunhão e para a comunhão.

É bem verdade que os irmãos da reta doutrina não gostam de trabalhar outros aspectos que fujam da ortodoxia já estabelecida. Mas creio que seria também relevante compreender aquilo que Leonardo Boff disse, certa vez, a um estudante muçulmano que acompanhava uma de suas aulas na Alemanha: "chamamos de Pai o Deus que está acima de nós, de Filho o que está junto conosco e de Espírito Santo o Deus que está dentro de nós."[30] Efetivamente, quando redescobrimos esta dimensão relacional e tentamos compreender a Trindade ao nível da experiência, compreendemos que:

"a um Deus que transcende, que é maior, que não tem origem, que é um transfundo de mistério, chamamos de pai. Um Deus que se fez companheiro, que anda conosco, chamamos de Filho. O Deus que está dentro de nós, como entusiasmo, como fogo interior, como vida, de Espírito Santo".[31]

Este Deus relacional que é pessoal e que trata com pessoas não pode deixar de “se entristecer” diante do que se tem feito com as pessoas em nossa sociedade. Numa cultura capitalista, só tem valor que produz, por isso se explica o esquecimento em que colocamos nossos velhos, mulheres, crianças e desempregados. Ricardo Barbosa nos fala de um encontro a que compareceu e no qual ouviu a seguinte afirmação:

“O dia em que o ser humano for capaz de colocar-se diante de uma mulher negra, pobre, velha, doente, prostituta, bissexual, aidética e conseguir perceber beleza e dignidade humana, e ser capaz de relacionar-se cm afeto e ternura, significa que conseguiu romper com os vícios criados por uma sociedade consumista e impessoal”.[32]

Por fim, é importante compreender que embora a linguagem que usamos para designar e predicar sobre Deus e sobre a trindade seja uma linguagem inadequada e, desde sempre limitada, não devemos evitar dizer. Não devemos deixar de falar. Devemos, no entanto, reconhecer que:

“Seria absurdo ao último grau, imaginar que nós, que não compreendemos o nosso próprio ser, nem as forças da natureza que nos rodeiam, pudéssemos compreender os mistérios profundos da Divindade. É esta, de todas as doutrinas cristãs, talvez a mais difícil de entender e de explicar”.[33]

Concordamos com Boetner quando afirma que a Trindade não é contradição mas sim mistério. E é por concordar com isso, que a dimensão espiritual e contemplativa precisa sempre ser ressaltada. Para concluir este tópico gostaria de citar as palavras de S. Boaventura em sua meditação Itinarário da Mente para Deus:

“Ninguém creia que lhe baste a leitura sem a unção, a especulação sem a devoção, a investigação sem a admiração, a atenção sem a alegria, a atividade sem a piedade, a ciência sem a caridade, a inteligência sem a humildade, o estudo sem a graça divina, a pesquisa humana sem a sabedoria inspirada por Deus”.[34]
  


[1] CATÃO, F. A Trindade – Uma Aventura Teológica, p. 3
[2] Ver sua contribuição para a coleção Mysterium Salutis Editora Vozes II/1, p.285
[3] CATÃO, F. A trindade – Uma Aventura Teológica, p. 15
[4] FIORENZA, F. & GALVIN, J.P. Teologia Sistemática: Perspectivas Católico-Romanas Vol. I, p. 213
[5] CATÃO, F. Trindade – uma Aventura Teológica, p. 4
[6] LOHSE B. A Fé Cristã Através dos Tempos, p. 47
[7] BAVINCK, HERMANN Teologia Sistemática, p. 170
[8] BOFF, LEONARDO A Trindade e a Sociedade, p. 74
[9] FIORENZA, F. & GALVIN, J.P. Teologia Sistemática: Perspectivas Católico-Romanas Vol. I, p. 215
[10] BAVINCK, HERMANN Teologia Sistemática, p. 170
[11] BAVINCK, HERMANN Teologia Sistemática, p. 171
[12] BARTH, KARL Esbozo de Dogmática, p. 52
[13] BARTH, KARL Esbozo de Dogmática, p. 53
[14] BARTH, KARL Esbozo de Dogmática, p. 53
[15] BAVINCK, HERMANN Teologia Sistemática, p. 171
[16] KLOPPENBURG, B. Trindade; O Amor em Deus, p.64
[17] CALVINO, JEAN Institución de la Religión Cristiana, I.xiii.6
[18] CATÃO, F. A Trindade – Uma Aventura Teológica, p. 6, 7
[19] BAVINCK, HERMANN Teologia Sistemática, p. 171
[20] BAVINCK, HERMANN Teologia Sistemática, p. 171
[21] CATÃO, F. A Trindade – Uma Aventura Teológica, p. 5
[22] CATÃO, F. A Trindade – Uma Aventura Teológica, p. 5
[23] MARASCHIN, JACI O Espelho e a Transparência, p. 97
[24] TILLICH, PAUL Teologia Sistemática, p. 13 Para Tillich estes traços demoníacos existem quando “o fundamentalismo se combina com uma tendência anti-teológica...A verdade teológica de ontem é defendida como a verdade teológica de hoje e de amanhã...eleva algo finito e transitório à validez infinita e eterna...destrói a humilde honestidade pela busca pela verdade, divide a consciência de seus seguidores que refletem e os torna fanáticos”.
[25] FEINER, J. & VISCHER, L. (Public.)O Novo Livro da Fé – A Fé Cristã Comum, p. 166, 167
[26] BARBOSA, RICARDO A Trindade, o Pessoal e o Social na Espiritualidade Cristã, Vox Scripturae 5:1 (Março de 1995)
[27] Pericorética vem do grego: “girar em torno” e quer ressaltar a mútua compenetração sem mistura das pessoas. Este termo faz a ponte entre a unidade e a trindade u seja, faz a comunhão entre elas
[28] KLOPPENBURG, B. Trindade: Amor em Deus, p. 68
[29] BARBOSA, RICARDO A Trindade, o Pessoal e o Social na Espiritualidade Cristã, Vox Scripturae 5:1 (Março de 1995)
[30] BOFF, LEONARDO Fundamentalismo: A Globalização e o Futuro da Humanidade, p. 80
[31] BOFF, LEONARDO Fundamentalismo: A Globalização e o Futuro da Humanidade, p. 80
[32] BARBOSA, RICARDO A Trindade, o Pessoal e o Social na Espiritualidade Cristã, Vox Scripturae 5:1 (Março de 1995)
[33] BOETTNER L. & WARFIELD B.B. A Doutrina da Trindade, p. 86
[34] Citado por Boaventura Kloppenburg em Trindade: O Amor em Deus, p. 11

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