Assim como um grande
rio é o resultado final da cooperação de inúmeros riachos e afluentes que nele
jogam suas águas a Igreja anglicana entende ser, ela mesma, o resultado de
inúmeros movimentos que tiveram lugar na rica história da Igreja de Cristo
nestes dois milênios. Estes movimentos podem ser classificados em, pelo menos,
cinco vias: “Católico”, “Protestante”, Evangélico”, “Carismático” e “Liberal”.
Neste capítulo estudaremos a vertente católica que, dentro do anglicanismo,
acabou por ser chamada de anglo-catolicismo. Com base nas palavras do então
Rev. Sebastião Gameleira em seu artigo Anglicanismo: Católico ou
Protestante? podemos, com segurança, afirmar que o “Anglicanismo não é
paralelismo mas confluência no sentido de construirmos uma só igreja que, como
um todo, tem suas próprias marcas”.105 A Igreja Anglicana entende assim ser
simultaneamente uma igreja católica e reformada. Ela é, como alguém já disse,
“católica para toda verdade de Deus e protestante contra todo erro humano”.
Sendo assim ela quer aceitar as doutrinas próprias da Reforma sem ter que,
necessariamente, lançar fora ou abrir mão de toda a tradição e riqueza que foi
elaborada e guardada durante tantos séculos na história da Igreja universal. Ao
mesmo tempo ela também pretende acolhe em seu seio outras vertentes que têm
surgido com o passar do tempo e sob a iluminação do Espírito Santo, sem que com
isso, gere conflitos e concorra para a desagregação da igreja. A Igreja
Anglicana entende ser parte da Igreja una, santa, católica e apostólica de
Cristo, assim como tantas outras denominações. Ela afirma isto, porque não
acredita que haja uma outra Igreja além da única Igreja de Cristo, assim como
também não há outro corpo além daquele que é exposto nas páginas do Novo
Testamento e que é denominado de corpo de Cristo. Sua tendência anglo-católica,
chamada em alguns lugares de “Igreja alta”, é aquela que durante os últimos
anos se caracterizou pela guarda de determinados elementos, práticas, ritos e
tradições que tomaram forma a partir do período patrístico e que se estenderam
pela escolástica, até o século XIX. Ela pode, com muita propriedade, ser
associada com algumas ênfases clássicas, tais como: a valorização dos
sacramentos, uma liturgia mais rica e elaborada, a busca e o resgate da
tradição e a insistência na sucessão apostólica. Mesmo entendendo que todo resumo
e sistematização corre o perigo de se tornar uma caricatura, compreendemos que
a tradição anglo-católica (Igreja Alta) pode, com muita propriedade, ser
apresentada com as ênfases acima. Um bom resumo destes temas que marcam o
anglo-catolicismo pode, com certeza, ser encontrado nas palavras de Massey
Shepherd, num artigo escrito para a revista Concilium, no qual ele
afirma que: “Quaisquer que tenham sido a ocasião e as circunstâncias da Reforma
do século XVI, as Igrejas anglicanas sempre reivindicaram inquebrantada
continuidade, na fé e na ordem, com a Igreja universal da antigüidade –
transmitida numa seqüência em duas correntes da mesma fonte: as antigas
fundações britânico-irlandesas do tempo do baixo império Romano e a missão
enviada pelo Papa Gregório Magno ao povo anglo, no fim do século VI. Os
anglicanos aceitam os credos eas decisões
doutrinárias dos sete primeiros concílios ecumênicos como legítimas
interpretações da revelação escriturística. As liturgias da comunhão anglicana
contêm as diversas revisões do Book of Common Prayer, preservam as
estruturas básicas e a substância do culto com se desenvolveu na Igreja do
ocidente. E insiste também em manter as três ordens sacras: bispo, sacerdote
(presbítero) e diácono em sucessão desde os tempos apostólicos e da Igreja
primitiva”.106 Esta vertente conhecida então por
anglocatolicismo teve sua origem ligada ao Tractarianismo ou Movimento de
Oxford. Este movimento que teve sua origem em 1833 foi uma reação de setores da
Igreja da Inglaterra contra dois inimigos: o domínio da igreja pelo Estado e o
liberalismo teológico. O principal líder desde movimento foi John H. Newman
(1801-1890), autor de vinte dos Tracts e que mais tarde se tornaria
cardeal na igreja romana. Antes de iniciarmos propriamente nosso estudo acerca
das características desta vertente do anglicanismo um lembrete: Ser
anglo-católico não significa de forma alguma ser um católico romano. Em que
pese haverem semelhanças nas tendências e nas ênfases, como veremos logo
adiante, um anglo-católico continua sendo um protestante.
I.
Sacramentos.
Já no século XVI, com
os 39 Artigos de Religião, os anglicanos entendiam que os sacramentos
instituídos por Cristo “não são unicamente designações ou indícios da profissão
dos cristãos, mas antes testemunhos certos e firmes, e sinais eficazes da
graça, e da boa vontade de Deus para conosco pelos quais ele opera
invisivelmente em nós, e não só vivifica, mas também fortalece e confirma a
nossa fé nele.”(Artigo XXV) Como anglicanos, rejeitamos fortemente aquelas ideias
segundo as quais os sacramento nada mais são do que ritos que representam ou
simbolizam verdades espirituais. Nós cremos firmemente que os santos
sacramentos não apenas possuem uma validade objetiva, mas também, que eles são
fundamentais e centrais para a adoração e a prática cristã. De fato acreditamos
que os sacramentos conferem graça a todos os que dignamente e com fé deles se
aproximam. Como anglicanos, damos especial atenção ao Batismo e a Eucaristia
(ceia do Senhor) porque foram instituídos diretamente pelo próprio Cristo, mas
acreditamos também que Deus, através de sua graça e da ação do Espírito Santo,
pode usar outras formas de comunicação das suas divinas bênçãos. A estas outras
formas, chamamos “Ritos Sacramentais”. São eles: o matrimônio, ordenação,
confissão, confirmação e a bênção dos enfermos. Quanto ao batismo, acreditamos
ser ele “o Sacramento da Iniciação Cristã, pelo qual, através da Água e do
Espírito Santo, o batizando nasce para uma vida nova e é enxertado no Corpo de
Cristo, a Igreja”.107
Alguns
anglo-católicos valorizam tanto a dimensão sacramental deste rito que chegam a
beirar a doutrina da regeneração batismal, não valorizando a necessidade da fé
pessoal para o relacionamento com Cristo. Quanto à eucaristia, podemos afirmar
que todos os anglicanos nutrem por ela, uma enorme reverência, uma vez que ela
é “o ato central do culto cristão”.108 A variedade de interpretações acaba por gerar
uma variedade de ênfases e isto gera muitas designações para a eucaristia. Ela
tanto pode ser chamada de “Santa Comunhão” como pode ser chamada de “Missa”.
Esta última terminologia é mais comum entre os anglo-católicos. Estes, graças à
sua postura tendente ao sacramentalismo, se aproxima de uma interpretação
física da presença de Cristo na Eucaristia. Os demais Ritos Sacramentais são
muito valorizados e ressaltados pelos anglo-católicos, chegando mesmo a
entender que eles possuem o mesmo status de Sacramento, como os
anteriores.
II.
Liturgia
No que diz respeito
ao tema da liturgia, o movimento anglo-católico nos lembra e nos ensina quatro
importantes verdades que deverão estar sempre diante de nós e que nunca
deveriam ser negligenciada.
1.
A
liturgia é um ato de adoração
A primeira verdade é
que a liturgia é um ato de adoração. E se assim é, ela não pode ser feita de
qualquer forma, apressadamente, descuidadamente ou relaxadamente. Além disso um
Deus belo e criativo não deve ser adorado de uma forma pobre e feia. As
realidades espirituais nos falam de sentimentos (pe. A alegria, o júbilo e a
tristeza) que trazemos para o culto. Estes sentimentos podem muito bem ser
traduzidos em gestos, posturas ou símbolos e cores, que nos auxiliam na
adoração. Para tanto, símbolos, dias santos e épocas especiais nos ajudam a
entender e a viver essas realidades espirituais. Tudo feito para tornar a
adoração um ato relevante e significativo.
2.
A
liturgia é um ato de comunhão.
A adoração é a
grande, solene e festiva forma de se encontrar com Deus, seja individualmente,
ou seja na comunidade dos cristãos em comunhão com Cristo. A liturgia,
portanto, deve ter um papel importantíssimo, a medida em que ela facilitará ou
dificultará esta comunhão. Os elementos do culto deverão ser de tal forma
dispostos, que representem e facilitem a compreensão das grandes verdades
espirituais que tratam da comunhão entre os homens e Deus e entre os homens e
seus pares.
3. A liturgia é um
ato do povo de Deus.
Outra verdade que
deve ser destacada, é a de que a liturgia não é um ato isolado do sacerdote, ou
um diálogo entre o celebrante e o coro. Não vamos aoculto para “assistir”
alguém cultuar. Vamos para, como povo de Deus e como comunidade, celebrar a
nova vida em Cristo e as bênçãos advindas desta realidade. Na liturgia a
participação de todos os atores (clérigos e leigos) deve ser prevista estabelecida
e esperada.
4. A liturgia possui
ordem
A liturgia anglicana
está reunida no Livro de Oração Comum. Este livro, que como tal surgiu em 1549,
possui, dentre outros elementos, a ordem para as orações matutinas e
vespertinas, o rito da eucaristia, do batismo, do matrimônio, da confissão, da
ordenação, etc. Ordem e forma são importantes porque nos mantêm no caminho de
uma adoração plena e equilibrada.
III.
Tradição.
A Igreja Anglicana e
particularmente o anglo-catolicismo, valoriza fortemente o entendimento dos
cristãos primitivos oriundos ainda de um período de ortodoxia e de
indivisibilidade da Igreja de Cristo. Valoriza também as opiniões dos demais
cristãos que, através dos séculos, se expressaram sobre os mais diversos
assuntos, tais como as Escrituras, a liturgia, a vida cristã e as doutrinas
centrais do cristianismo. Entendem que estas opiniões foram guiadas pelo
Espírito Santo que as usou para o bem e a edificação do corpo de Cristo durante
a Idade Média e até hoje. Entende, no entanto, que estas opiniões, decisões
conciliares e afirmações precisam se conformar e se submeterem à autoridade das
Escrituras como a base de toda nossa prática e crença. Desta forma, ritos, usos
e costumes, oriundos da Idade Média ou ainda do período patrístico, não são
necessariamente errados em si mesmos. Pelo contrário, eles fazem parte da rica
herança que o anglicanismo herdou de seus pais e que não está disposto a abrir
mão de forma alguma.
IV. O Episcopado
Histórico
Os anglicanos
entendem que a Igreja é uma instituição sagrada. Ela é o corpo de Cristo, que
foi criada por ele mesmo e entregue aos apóstolos que foram comissionados para
espalhar a boa nova ao redor do mundo. Entendem, também, que depois da morte
destes apóstolos, a liderança passou aos homens que foram por eles mesmos
estabelecidos: os bispos, seus legítimos sucessores. Os anglocatólicos, com
razão, dão muita importância ao ministério episcopal. Mas, como para o
anglo-catolicismo radical, o episcopado é uma questão de esse da Igreja,
alguns, seriam capazes de abririam mão até do caráter ecumênico da Igreja
anglicana se isso ameaçasse o episcopado. Explico, Sabemos que a Igreja
anglicana é uma Igreja que tem atuado no movimento ecumênico moderno desde o
seu início, na Conferência Missionária Mundial que se realizou em Edimburgo em
1910. Esta inclinação ao ecumenismo transpareceu na Conferência de Lambeth em
1920, quando de lá foi lançado um “apelo a todo povo cristão”, para que
buscasse a unidade visível do cristianismo, tendo como base uma declaração com
quatro pontos: “As Santas Escrituras como documento da revelação de Deus mesmo ao
homem e como tendo a regra e o último padrão de fé; e o credo comumente chamado
Niceno, como uma afirmação suficiente da fé cristã, e que ele ou o cedo dos
apóstolos seja a confissão batismal da fé. Os sacramentos divinamente
instituídos do batismo e da santa comunhão como exprimindo toda a vida
corporificada de toda a comunhão cristã em e com Cristo. Um ministério
reconhecido por todas as partes da Igreja como possuindo não somente o chamado
interno do Espírito, mas também a comissão de Cristo e a autoridade de todo o
corpo”. Mas é preciso que se destaque que, embora busque avidamente a unidade visível
entre os vários membros do corpo de Cristo, a Igreja anglicana não está disposta
a abrir mão da graça do Episcopado. Por isso, deve ser notado que, no que se
refere ao quarto item, o que se refere ao ministério, o “apelo” reiterava queo
episcopado é o único meio de providenciar este ministério. Ouçamos as palavras
de Shepherd; “Não é que questionemos, um momento sequer, a espiritualidade real
dos ministérios das Comunhões que não possuem o Episcopado. Pelo contrário,
reconhecemos com gratidão que estes ministérios têm sido manifestadamente
abençoado e pertencido ao Espírito Santo como meios eficazes de graça. Mas
sustentamos o fato de que considerações, tanto históricas como da experiência
atual, justificam a motivação que nos faz reivindicar a existência do
Episcopado. Além disso insistimos em frisar que o Episcopado é agora, e dará
provas de ser no futuro, o melhor instrumento para a manutenção da unidade e da
continuidade na Igreja. Entretanto, desejamos sumamente que a função de Bispo
seja por toda parte exercida de maneira representativa e constitucional e
expresse com mais verdade tudo o que deveria significar – para a vida da
família cristã – o título de Pai em Deus”,110 Portanto com esta convicção, e de
conformidade com o ensino das Escrituras e com a prática da Igreja primitiva,
os anglicanos- e de forma especial os anglo-católicos- valorizam o fato de que
ela é governada por Bispos (supervisores) legitimamente consagrados por outros
Bispos em uma ininterrupta cadeia de sucessão que se estende até o tempo dos
apóstolos. Os presbíteros e diáconos são ordenados pelos bispos e por eles
comissionados, autorizados e enviados para serviços particulares com
responsabilidades especiais. O movimento anglo-católico, grosso modo, pode ser
subdividido em duas grandes frentes teológicas. Uma mais conservadora, ligada
ao movimentoconhecido como Faith
Forward e outra de linha mais moderada conhecida como Affirm Catolicism. Cremos
que há aspectos no anglo-catolicismo que ainda precisam ser alvo de um maior
estudo e autocrítica por parte de seus membros. Em primeiro lugar o anglo-catolicismo
precisa rever sua postura tradicionalista. O movimento anglocatólico em geral
possui uma atitude reativa e não proativa no que diz respeito ao novo e a
contextualização. Uma das instâncias em que este conservadorismo é particularmente
visível é na dimensão litúrgica da igreja. Os anglo-católicos em geral possuem
um apego muito forte ao texto litúrgico e a formalidade da cerimônia,
fazendo-nos entender que o rito passa a ser um fim em si mesmo e não uma
ferramenta missionária. Em segundo lugar este movimento precisa rever sua
postura hierarquista. O apego ao tradicional e a rejeição da modernidade (e
consequentemente à Reforma) faz com que os anglo-católicos assumam também uma
postura de fortalecimento da hierarquia e o desenvolvimento da temática episcopal
e sacerdotal em sua agenda de discussão. Isto acaba por gerar uma
despreocupação 58
com o
papel do leigo e com a sinodalidade como opção de administração participativa
da Igreja. Com toda a segurança o tema que mais marcou presença nos círculos anglocatólicos
nas ultimas décadas, foi aquele relacionando com a ordenação feminina. Este
assunto acabou gerando tanta discussão que, apenas nos Estados Unidos cerca de
doze (12) igrejas cismáticas surgiram por causa da rejeição desta prática. Além
disso, tanto os Estados Unidos quanto a Inglaterra, presenciaram uma grande
migração de clérigos anglicanos para as Igrejas Ortodoxas ou mesmo para a
Igreja Romana. Em terceiro lugar sua postura sacramentalista. Os
anglo-católicos precisam rever esta postura onde, a ortodoxia do rito e da
fórmulas históricas, muitas vezes passas a ser mais importante do que o alvo
para onde os ritos e as fórmulas apontam. Para encerrar gostaria de me reportar
a excelente sistematização feita pelo bispo D. Robinson Cavalcanti sobre as
correntes anglicanas, onde ele nos lembra que a fonte teológica que o
anglo-catolicismo privilegia é a patrística. Lá ele também nos innforma que,
como sua afinidade eclesial é com o catolicismo romano e com a ortodoxia
oriental, eles tendem a uma soteriologia sacramentalista, a uma liturgia
ritualista; e que, apesar de suas preocupações sociais filantrópicas,
normalmente possuem uma inserção socio-política conservadora. No que diz
respeito às posturas teológicas, os anglo-católicos também se inclinam ao
conservadorismo, mormente nas questões mais tensas como a teologia do divórcio,
da ordenação feminina e da ordenação de homossexuais. A bem da verdade, deve-se
registrar que, dentro da ala católica da Igreja anglicana, há também setores
que se inclinam para o carismatismo e outros que se inclinam para o
liberalismo.
Rev. Jorge Aquino+
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