terça-feira, 3 de setembro de 2013

Correntes do Anglicanismo: Anglo-Católica




Assim como um grande rio é o resultado final da cooperação de inúmeros riachos e afluentes que nele jogam suas águas a Igreja anglicana entende ser, ela mesma, o resultado de inúmeros movimentos que tiveram lugar na rica história da Igreja de Cristo nestes dois milênios. Estes movimentos podem ser classificados em, pelo menos, cinco vias: “Católico”, “Protestante”, Evangélico”, “Carismático” e “Liberal”. Neste capítulo estudaremos a vertente católica que, dentro do anglicanismo, acabou por ser chamada de anglo-catolicismo. Com base nas palavras do então Rev. Sebastião Gameleira em seu artigo Anglicanismo: Católico ou Protestante? podemos, com segurança, afirmar que o “Anglicanismo não é paralelismo mas confluência no sentido de construirmos uma só igreja que, como um todo, tem suas próprias marcas”.105 A Igreja Anglicana entende assim ser simultaneamente uma igreja católica e reformada. Ela é, como alguém já disse, “católica para toda verdade de Deus e protestante contra todo erro humano”. Sendo assim ela quer aceitar as doutrinas próprias da Reforma sem ter que, necessariamente, lançar fora ou abrir mão de toda a tradição e riqueza que foi elaborada e guardada durante tantos séculos na história da Igreja universal. Ao mesmo tempo ela também pretende acolhe em seu seio outras vertentes que têm surgido com o passar do tempo e sob a iluminação do Espírito Santo, sem que com isso, gere conflitos e concorra para a desagregação da igreja. A Igreja Anglicana entende ser parte da Igreja una, santa, católica e apostólica de Cristo, assim como tantas outras denominações. Ela afirma isto, porque não acredita que haja uma outra Igreja além da única Igreja de Cristo, assim como também não há outro corpo além daquele que é exposto nas páginas do Novo Testamento e que é denominado de corpo de Cristo. Sua tendência anglo-católica, chamada em alguns lugares de “Igreja alta”, é aquela que durante os últimos anos se caracterizou pela guarda de determinados elementos, práticas, ritos e tradições que tomaram forma a partir do período patrístico e que se estenderam pela escolástica, até o século XIX. Ela pode, com muita propriedade, ser associada com algumas ênfases clássicas, tais como: a valorização dos sacramentos, uma liturgia mais rica e elaborada, a busca e o resgate da tradição e a insistência na sucessão apostólica. Mesmo entendendo que todo resumo e sistematização corre o perigo de se tornar uma caricatura, compreendemos que a tradição anglo-católica (Igreja Alta) pode, com muita propriedade, ser apresentada com as ênfases acima. Um bom resumo destes temas que marcam o anglo-catolicismo pode, com certeza, ser encontrado nas palavras de Massey Shepherd, num artigo escrito para a revista Concilium, no qual ele afirma que: “Quaisquer que tenham sido a ocasião e as circunstâncias da Reforma do século XVI, as Igrejas anglicanas sempre reivindicaram inquebrantada continuidade, na fé e na ordem, com a Igreja universal da antigüidade – transmitida numa seqüência em duas correntes da mesma fonte: as antigas fundações britânico-irlandesas do tempo do baixo império Romano e a missão enviada pelo Papa Gregório Magno ao povo anglo, no fim do século VI. Os anglicanos aceitam os credos eas decisões doutrinárias dos sete primeiros concílios ecumênicos como legítimas interpretações da revelação escriturística. As liturgias da comunhão anglicana contêm as diversas revisões do Book of Common Prayer, preservam as estruturas básicas e a substância do culto com se desenvolveu na Igreja do ocidente. E insiste também em manter as três ordens sacras: bispo, sacerdote (presbítero) e diácono em sucessão desde os tempos apostólicos e da Igreja primitiva”.106  Esta vertente conhecida então por anglocatolicismo teve sua origem ligada ao Tractarianismo ou Movimento de Oxford. Este movimento que teve sua origem em 1833 foi uma reação de setores da Igreja da Inglaterra contra dois inimigos: o domínio da igreja pelo Estado e o liberalismo teológico. O principal líder desde movimento foi John H. Newman (1801-1890), autor de vinte dos Tracts e que mais tarde se tornaria cardeal na igreja romana. Antes de iniciarmos propriamente nosso estudo acerca das características desta vertente do anglicanismo um lembrete: Ser anglo-católico não significa de forma alguma ser um católico romano. Em que pese haverem semelhanças nas tendências e nas ênfases, como veremos logo adiante, um anglo-católico continua sendo um protestante.

I.              Sacramentos.

Já no século XVI, com os 39 Artigos de Religião, os anglicanos entendiam que os sacramentos instituídos por Cristo “não são unicamente designações ou indícios da profissão dos cristãos, mas antes testemunhos certos e firmes, e sinais eficazes da graça, e da boa vontade de Deus para conosco pelos quais ele opera invisivelmente em nós, e não só vivifica, mas também fortalece e confirma a nossa fé nele.”(Artigo XXV) Como anglicanos, rejeitamos fortemente aquelas ideias segundo as quais os sacramento nada mais são do que ritos que representam ou simbolizam verdades espirituais. Nós cremos firmemente que os santos sacramentos não apenas possuem uma validade objetiva, mas também, que eles são fundamentais e centrais para a adoração e a prática cristã. De fato acreditamos que os sacramentos conferem graça a todos os que dignamente e com fé deles se aproximam. Como anglicanos, damos especial atenção ao Batismo e a Eucaristia (ceia do Senhor) porque foram instituídos diretamente pelo próprio Cristo, mas acreditamos também que Deus, através de sua graça e da ação do Espírito Santo, pode usar outras formas de comunicação das suas divinas bênçãos. A estas outras formas, chamamos “Ritos Sacramentais”. São eles: o matrimônio, ordenação, confissão, confirmação e a bênção dos enfermos. Quanto ao batismo, acreditamos ser ele “o Sacramento da Iniciação Cristã, pelo qual, através da Água e do Espírito Santo, o batizando nasce para uma vida nova e é enxertado no Corpo de Cristo, a Igreja”.107 Alguns anglo-católicos valorizam tanto a dimensão sacramental deste rito que chegam a beirar a doutrina da regeneração batismal, não valorizando a necessidade da fé pessoal para o relacionamento com Cristo. Quanto à eucaristia, podemos afirmar que todos os anglicanos nutrem por ela, uma enorme reverência, uma vez que ela é “o ato central do culto cristão”.108 A variedade de interpretações acaba por gerar uma variedade de ênfases e isto gera muitas designações para a eucaristia. Ela tanto pode ser chamada de “Santa Comunhão” como pode ser chamada de “Missa”. Esta última terminologia é mais comum entre os anglo-católicos. Estes, graças à sua postura tendente ao sacramentalismo, se aproxima de uma interpretação física da presença de Cristo na Eucaristia. Os demais Ritos Sacramentais são muito valorizados e ressaltados pelos anglo-católicos, chegando mesmo a entender que eles possuem o mesmo status de Sacramento, como os anteriores.

II.            Liturgia

No que diz respeito ao tema da liturgia, o movimento anglo-católico nos lembra e nos ensina quatro importantes verdades que deverão estar sempre diante de nós e que nunca deveriam ser negligenciada.

1.    A liturgia é um ato de adoração

A primeira verdade é que a liturgia é um ato de adoração. E se assim é, ela não pode ser feita de qualquer forma, apressadamente, descuidadamente ou relaxadamente. Além disso um Deus belo e criativo não deve ser adorado de uma forma pobre e feia. As realidades espirituais nos falam de sentimentos (pe. A alegria, o júbilo e a tristeza) que trazemos para o culto. Estes sentimentos podem muito bem ser traduzidos em gestos, posturas ou símbolos e cores, que nos auxiliam na adoração. Para tanto, símbolos, dias santos e épocas especiais nos ajudam a entender e a viver essas realidades espirituais. Tudo feito para tornar a adoração um ato relevante e significativo.

2.    A liturgia é um ato de comunhão.

A adoração é a grande, solene e festiva forma de se encontrar com Deus, seja individualmente, ou seja na comunidade dos cristãos em comunhão com Cristo. A liturgia, portanto, deve ter um papel importantíssimo, a medida em que ela facilitará ou dificultará esta comunhão. Os elementos do culto deverão ser de tal forma dispostos, que representem e facilitem a compreensão das grandes verdades espirituais que tratam da comunhão entre os homens e Deus e entre os homens e seus pares.

3. A liturgia é um ato do povo de Deus.

Outra verdade que deve ser destacada, é a de que a liturgia não é um ato isolado do sacerdote, ou um diálogo entre o celebrante e o coro. Não vamos aoculto para “assistir” alguém cultuar. Vamos para, como povo de Deus e como comunidade, celebrar a nova vida em Cristo e as bênçãos advindas desta realidade. Na liturgia a participação de todos os atores (clérigos e leigos) deve ser prevista estabelecida e esperada.

4. A liturgia possui ordem

A liturgia anglicana está reunida no Livro de Oração Comum. Este livro, que como tal surgiu em 1549, possui, dentre outros elementos, a ordem para as orações matutinas e vespertinas, o rito da eucaristia, do batismo, do matrimônio, da confissão, da ordenação, etc. Ordem e forma são importantes porque nos mantêm no caminho de uma adoração plena e equilibrada.


III.           Tradição.

A Igreja Anglicana e particularmente o anglo-catolicismo, valoriza fortemente o entendimento dos cristãos primitivos oriundos ainda de um período de ortodoxia e de indivisibilidade da Igreja de Cristo. Valoriza também as opiniões dos demais cristãos que, através dos séculos, se expressaram sobre os mais diversos assuntos, tais como as Escrituras, a liturgia, a vida cristã e as doutrinas centrais do cristianismo. Entendem que estas opiniões foram guiadas pelo Espírito Santo que as usou para o bem e a edificação do corpo de Cristo durante a Idade Média e até hoje. Entende, no entanto, que estas opiniões, decisões conciliares e afirmações precisam se conformar e se submeterem à autoridade das Escrituras como a base de toda nossa prática e crença. Desta forma, ritos, usos e costumes, oriundos da Idade Média ou ainda do período patrístico, não são necessariamente errados em si mesmos. Pelo contrário, eles fazem parte da rica herança que o anglicanismo herdou de seus pais e que não está disposto a abrir mão de forma alguma.

IV. O Episcopado Histórico

Os anglicanos entendem que a Igreja é uma instituição sagrada. Ela é o corpo de Cristo, que foi criada por ele mesmo e entregue aos apóstolos que foram comissionados para espalhar a boa nova ao redor do mundo. Entendem, também, que depois da morte destes apóstolos, a liderança passou aos homens que foram por eles mesmos estabelecidos: os bispos, seus legítimos sucessores. Os anglocatólicos, com razão, dão muita importância ao ministério episcopal. Mas, como para o anglo-catolicismo radical, o episcopado é uma questão de esse da Igreja, alguns, seriam capazes de abririam mão até do caráter ecumênico da Igreja anglicana se isso ameaçasse o episcopado. Explico, Sabemos que a Igreja anglicana é uma Igreja que tem atuado no movimento ecumênico moderno desde o seu início, na Conferência Missionária Mundial que se realizou em Edimburgo em 1910. Esta inclinação ao ecumenismo transpareceu na Conferência de Lambeth em 1920, quando de lá foi lançado um “apelo a todo povo cristão”, para que buscasse a unidade visível do cristianismo, tendo como base uma declaração com quatro pontos: “As Santas Escrituras como documento da revelação de Deus mesmo ao homem e como tendo a regra e o último padrão de fé; e o credo comumente chamado Niceno, como uma afirmação suficiente da fé cristã, e que ele ou o cedo dos apóstolos seja a confissão batismal da fé. Os sacramentos divinamente instituídos do batismo e da santa comunhão como exprimindo toda a vida corporificada de toda a comunhão cristã em e com Cristo. Um ministério reconhecido por todas as partes da Igreja como possuindo não somente o chamado interno do Espírito, mas também a comissão de Cristo e a autoridade de todo o corpo”. Mas é preciso que se destaque que, embora busque avidamente a unidade visível entre os vários membros do corpo de Cristo, a Igreja anglicana não está disposta a abrir mão da graça do Episcopado. Por isso, deve ser notado que, no que se refere ao quarto item, o que se refere ao ministério, o “apelo” reiterava queo episcopado é o único meio de providenciar este ministério. Ouçamos as palavras de Shepherd; “Não é que questionemos, um momento sequer, a espiritualidade real dos ministérios das Comunhões que não possuem o Episcopado. Pelo contrário, reconhecemos com gratidão que estes ministérios têm sido manifestadamente abençoado e pertencido ao Espírito Santo como meios eficazes de graça. Mas sustentamos o fato de que considerações, tanto históricas como da experiência atual, justificam a motivação que nos faz reivindicar a existência do Episcopado. Além disso insistimos em frisar que o Episcopado é agora, e dará provas de ser no futuro, o melhor instrumento para a manutenção da unidade e da continuidade na Igreja. Entretanto, desejamos sumamente que a função de Bispo seja por toda parte exercida de maneira representativa e constitucional e expresse com mais verdade tudo o que deveria significar – para a vida da família cristã – o título de Pai em Deus”,110 Portanto com esta convicção, e de conformidade com o ensino das Escrituras e com a prática da Igreja primitiva, os anglicanos- e de forma especial os anglo-católicos- valorizam o fato de que ela é governada por Bispos (supervisores) legitimamente consagrados por outros Bispos em uma ininterrupta cadeia de sucessão que se estende até o tempo dos apóstolos. Os presbíteros e diáconos são ordenados pelos bispos e por eles comissionados, autorizados e enviados para serviços particulares com responsabilidades especiais. O movimento anglo-católico, grosso modo, pode ser subdividido em duas grandes frentes teológicas. Uma mais conservadora, ligada ao movimentoconhecido como Faith Forward e outra de linha mais moderada conhecida como Affirm Catolicism. Cremos que há aspectos no anglo-catolicismo que ainda precisam ser alvo de um maior estudo e autocrítica por parte de seus membros. Em primeiro lugar o anglo-catolicismo precisa rever sua postura tradicionalista. O movimento anglocatólico em geral possui uma atitude reativa e não proativa no que diz respeito ao novo e a contextualização. Uma das instâncias em que este conservadorismo é particularmente visível é na dimensão litúrgica da igreja. Os anglo-católicos em geral possuem um apego muito forte ao texto litúrgico e a formalidade da cerimônia, fazendo-nos entender que o rito passa a ser um fim em si mesmo e não uma ferramenta missionária. Em segundo lugar este movimento precisa rever sua postura hierarquista. O apego ao tradicional e a rejeição da modernidade (e consequentemente à Reforma) faz com que os anglo-católicos assumam também uma postura de fortalecimento da hierarquia e o desenvolvimento da temática episcopal e sacerdotal em sua agenda de discussão. Isto acaba por gerar uma despreocupação 58 com o papel do leigo e com a sinodalidade como opção de administração participativa da Igreja. Com toda a segurança o tema que mais marcou presença nos círculos anglocatólicos nas ultimas décadas, foi aquele relacionando com a ordenação feminina. Este assunto acabou gerando tanta discussão que, apenas nos Estados Unidos cerca de doze (12) igrejas cismáticas surgiram por causa da rejeição desta prática. Além disso, tanto os Estados Unidos quanto a Inglaterra, presenciaram uma grande migração de clérigos anglicanos para as Igrejas Ortodoxas ou mesmo para a Igreja Romana. Em terceiro lugar sua postura sacramentalista. Os anglo-católicos precisam rever esta postura onde, a ortodoxia do rito e da fórmulas históricas, muitas vezes passas a ser mais importante do que o alvo para onde os ritos e as fórmulas apontam. Para encerrar gostaria de me reportar a excelente sistematização feita pelo bispo D. Robinson Cavalcanti sobre as correntes anglicanas, onde ele nos lembra que a fonte teológica que o anglo-catolicismo privilegia é a patrística. Lá ele também nos innforma que, como sua afinidade eclesial é com o catolicismo romano e com a ortodoxia oriental, eles tendem a uma soteriologia sacramentalista, a uma liturgia ritualista; e que, apesar de suas preocupações sociais filantrópicas, normalmente possuem uma inserção socio-política conservadora. No que diz respeito às posturas teológicas, os anglo-católicos também se inclinam ao conservadorismo, mormente nas questões mais tensas como a teologia do divórcio, da ordenação feminina e da ordenação de homossexuais. A bem da verdade, deve-se registrar que, dentro da ala católica da Igreja anglicana, há também setores que se inclinam para o carismatismo e outros que se inclinam para o liberalismo.

Rev. Jorge Aquino+

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