ARTIGO DA FOLHA DE SP
Eventualmente, quando lemos um artigo, podemos ficar em dúvida se o
autor realmente acredita naquilo que escreveu ou se é despreocupadamente
panfletário. No segundo caso, podemos concluir que consiste em
pilhéria, afronta desrespeitosa que causa polêmica, mas não pela razão
devida.
Em "A ética das baratas" ("Ilustrada, 16/9), o senhor Luiz Felipe Pondé
se refere à corrente filosófica denominada ética animal como "seita
verde", "mania adolescente".
Qualificou aqueles que a defendem como "pragas", "ridículos",
"adoradores de barata", "hippies velhos que fazem bijuteria vagabunda em
praças vazias" e "pessoas com problemas psicológicos". Nunca tínhamos
lido nada assim. Objeções sim, claro, mas nada nesses termos.
Segundo Pondé, Peter Singer, da Universidade Princeton, Tom Regan, da
Universidade da Carolina do Norte, Laurence Tribe, de Harvard, Cass
Sunstein, da Universidade de Chicago, Andrew Linzey, de Oxford, além de
tantos outros, inclusive dos autores deste arrazoado, são "ridículos",
"hippies velhos", "pragas"...
Singer, ao contrário do afirmado por Pondé, nunca sustentou, sem
qualquer mais, que "bicho é gente". O que Singer afirma é que pelo menos
alguns animais são suficientemente semelhantes a nós a ponto de merecer
uma consideração moral também semelhante, adotando o critério da
senciência ou consciência, com ênfase na capacidade de sofrer.
Pondé, que não leu e/ou entendeu Singer, faz, então, uma leitura da
natureza para dizer que ela "mata sem pena fracos pobres e oprimidos". O
que isso tem que ver? Concluímos que devemos agir assim com animais e
seres humanos? Embora a natureza não possa ser reduzida a isso, qual
moralidade se pode extrair de fatos naturais?
Ora, milhões de seres humanos são fracos, pobres e oprimidos. Os juízos
de valor sobre a correção ou o erro de determinadas condutas são
pertinentes somente aos agentes morais. Por isso, carece de qualquer
sentido avaliar eticamente a conduta do leão de atacar a zebra. Essa
interdição, porém, não nos impede de analisar a nossa conduta diante de
outros humanos e animais.
Pondé pergunta: "Como assim não se deve matar nenhuma forma de vida'?"
Quem proclama isso, senhor Pondé? Certamente não é a ética animal. Nem a
ética da vida. O que se afirma é que não se deve matar sempre que se
possa evitar isso. O que significa que não é irrelevante matar uma
barata ou que se está autorizado a matar uma vaca para satisfazer o
paladar.
A ciência nos informa que alfaces não sofrem --este é um estado atrelado
a fisiologia que elas não têm. Alfaces realmente não choram, senhor
Pondé. Humanos e porcos, sim. Tirar uma cenoura da terra e sangrar uma
galinha não são a mesma coisa. Podar um galho de árvore ou cortar a pata
de um cão também não. É o senso comum mais elementar.
Ridicularizar é recurso para desqualificar: como muitas vezes feito,
desprestigia a serenidade da argumentação acadêmica para angariar os
risos da plateia por meio de artifícios sofistas. Todavia, como alertou
santo Agostinho, uma coisa é rir de um problema, outra é resolvê-lo. E
nós, senhor Pondé, não estamos sorrindo.
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