No dia de Natal de 2011, a menina de cinco anos foi internada no
hospital. Lama tinha costelas e braço esquerdo quebrado, crânio
fraturado, hematomas e queimaduras em todo o corpo. Uma assistente
social que a viu no hospital disse que a menininha foi estuprada "em
todos os lugares". Depois de oito meses inconsciente, a garota morreu.
No dia 9 de outubro de 2012, outra menina, de quinze anos, levou um
tiro no rosto. Malala ficou inconsciente, à beira da morte, por uns
dias. Conseguiu se recuperar. Uma é obscura. A outra foi chamada de "a
adolescente mais famosa do mundo", já recebeu mais de 20 prêmios
internacionais, quase levou o Nobel da Paz, e foi recebida por
presidentes, famosos,
pela rainha da Inglaterra. Foi capa da maior revista semanal brasileira
esta semana. A razão para a diferença de tratamento de Lama e Malala:
business, just business.
Lama Al-Ghamdi foi morta pelo pai, Fayan al-Ghamdi. É um popular
pregador islâmico radical. Foi preso por estuprar e matar sua filha. Há
testemunhas de que ele teria feito o que fez por "duvidar da virgindade"
da filha. Foi condenado por um tribunal do seu país a oito anos de
prisão, oitocentas chicotadas e a pagar uma indenização para sua
ex-esposa, mãe de Lama. É uma pena ridícula para os padrões locais.
Ativistas denunciam a injustiça da decisão. Um assassinato bárbaro
punido com só oito anos de prisão?
Lama nasceu na Arábia Saudita. Vários tipos de crime são passíveis de
pena de morte no país (incuindo adultério e bruxaria). Mas um pai não
pode ser executado por matar seu filho ou sua mulher. Isso é punido com
penas de cinco a doze anos de prisão. Fayan al-Ghamdi é um caso limite.
Mas o fato é que a Arábia Saudita tem um histórico assustador no
tratamento de crianças. Segundo um estudo, uma em cada quatro crianças é
abusada no país. A National Society for Human Rights registra que 45%
das crianças sauditas enfrentam algum tipo de abuso, ou violência
doméstica. Recentemente, outro pregador defendeu na televisão saudita
que as meninas devem usar véu a partir dos dois anos de idade. "Se uma
menina é desejada sexualmente, os pais devem cobrir sua face e forçá-la a
usar o véu", disse Abdullah Daoud à rede Al-Majd.
A Arábia Saudita é uma monarquia islâmica ultraconservadora, desde
1932. Segundo a revista The Economist, é o 7º país mais ditatorial do
planeta. Tem a segunda maior reserva de petróleo do mundo. Petróleo é
95% das exportações e 70% da receita do governo. Quase 28 milhões de
pessoas vivem no país, berço do Islamismo, onde estão os dois locais
mais sagrados para os muçulmanos, Meca e Medina.
É proibido qualquer tipo de teatro, a exibição de filmes, beber álcool, e a pintura de pessoas ou animais.
A homossexualidade é crime. Há censura prévia em literatura e nenhuma
liberdade de expressão. É proibido ter religiões que não a oficial,
islamismo tradicional, wahabita. O casamento entre parentes é comum, o
que gerou um altíssimo número de crianças com problemas genéticos, como
atrofia muscular e surdez. E fundamentalistas sauditas, financiados por
ricaços sauditas, causam problemas mundo afora - como os que atacaram
Nova York em 2001, como o saudita Osama Bin Laden.
As mulheres penam mais. Mulher não vota. O tráfico de mulheres é
comum. A violência sobre as meninas é enorme. Toda mulher saudita adulta
tem que ter um "guardião" homem. Elas não têm o mesmo status civil dos
homens. Seus testemunhos em tribunal não valem tanto quanto as dos
homens. Elas têm dificuldade de se divorciar. Na hora de dividir
heranças, a filha mulher recebe metade do que o filho homem. A mulher
saudita é proibida de guiar automóveis. Há quem chame a situação de
"apartheid" - só que em vez de negros, são as mulheres os cidadãos de
segunda classe.
Lama al-Ghamdi
A Arábia Saudita, onde Lama morreu, é um país bem mais atrasado que o
Paquistão, onde Malala nasceu. O Paquistão é uma república
parlamentarista, com 180 milhões de habitantes. Para se ter uma ideia:
nas próximas eleições a presidente, um dos candidatos no Paquistão é uma
mulher - ou seja, há eleições, e as afegãs tem muito mais autonomia que
as sauditas.
O Paquistão é o segundo maior país islâmico, oitavo maior exército do
mundo, tem armas nucleares, e é eterno aliado dos EUA, também. É de
onde os americanos lutam a guerra contra o Taleban, movimento
hiper-radical islâmico, cujo objetivo é estabelecer no país a lei da
sharia, a lei do Corão. O Taleban controla um território no Paquistão,
na fronteira com o Afeganistão. Nasceu de um grupo de combatentes
fomentado e financiado pelos EUA e pela Arábia Saudita, como contraponto
à invasão soviética, nos anos 80. Eram retratados como heróis na mídia
ocidental (eles até ajudam os mocinhos em Rambo 3 e 007 - Marcado para a
Morte…). Hoje são retratados como os maiores canalhas do mundo. E quem
resiste a eles, como herói.
É o caso de Malala. Muito antes de ser baleada pelos talebans, ela já
era célebre internacionalmente. Aos onze anos, escrevia um blog sob
pseudônimo para a BBC, descrevendo sua vida em uma região do Paquistão
ocupada pelo Taleban, e defendendo os direitos das meninas estudarem.
Depois, o New York Times fez um documentário sobre ela. Passou a dar
entrevistas para a imprensa global. Ganhou prêmios. Virou alvo.
Malala só sobreviveu porque foi transferida para se tratar na
Inglaterra, o que só aconteceu por ser famosa, e por ser ótimo
marketing. Foi para a capa da revista Time, como uma das 100 pessoas
mais influentes do mundo. Passou a acumular prêmios. Sua família toda
vive na Inglaterra hoje. Seu livro, Eu Sou Malala, está sendo lançado
simultaneamente mundo afora. A campanha para ela levar o Nobel da Paz
foi maciça - apareceu em todos os principais programas de TV dos Estados
Unidos, nas últimas semanas. Só não levou porque a Academia Sueca
resolveu dar um tapinha com luva de chumbo nos EUA, concedendo o prêmio
para a OPCW (no Brasil, OPAQ), a Organização para a Proibição de Armas
Químicas. É a entidade que afirmava que Saddam Hussein jamais teve armas
de destruição em massa, furando o argumento que os americanos usaram
pra invadir o Iraque.
Malala é bacaninha? Claro. Mas o ponto é que os EUA lutam uma guerra
sem fim no Afeganistão, onde já gastaram bilhões sem fim. É o front mais
claro da guerra ao terror. É fundamental para o establishment americano
que o Taleban seja entendido como não só um perigo global, mas como
canalhas cruéis que baleiam menininhas. O que são, sem dúvida.
Enquanto isso, os canalhas cruéis da Arábia Saudita continuam
judiando de suas menininhas, com apoio americano. Malala é uma heroína.
Lama nem mártir é. A Arábia Saudita é aliado estratégico dos EUA desde
1941. A família real saudita é bancada pelos EUA, que controla a
extração de petróleo e gás no país. Retribui de muitas maneiras - por
exemplo, comprando mais de US$ 80 bilhões em armas fabricadas por
empresas americanas, entre 1951 e 2006. Gastos que estão aumentando: nos
últimos anos, o país tem gasto mais de US$ 20 bilhões em defesa
anualmente.
Lama e Malala são duas faces da mesma moeda: a hipocrisia imperial
americana. Que enfrenta fundamentalistas em um canto do mundo e os apoia
em outro. Que defende a liberdade quando é bom para o business, e
financia a opressão quando é mais lucrativo. Como fazem governos e
poderosos em todo canto; mas ninguém com o poder de fogo dos EUA.
Governo e capital americanos tratam as Lamas e Malalas do mundo, e aliás
todos nós, com dois pesos e duas medidas. A voz de Malala inspira. O
silêncio de Lama condena.
http://noticias.r7.com/blogs/andre-forastieri/2013/10/18/lama-e-malala-arabia-saudita-e-paquistao-duas-meninas-duas-medidas-duas-faces-da-mesma-moeda/
Nenhum comentário:
Postar um comentário